Viver é perigoso. Cuidar é simples e prazeroso

Aurélio Alves Ferreira

06 de abril de 2021, um dia como qualquer outro? A princípio, parece que o desejo de alguns é nos fazer acreditar que é um dia normal ou “novo-normal”. Entretanto, é necessário tomar posição e afirmar com força, veemência. Não é nem normal, nem “novo-normal.” O normal é algo habitual, costumeiro, natural, algo que se torna regra, medida para avaliação, análise, mensuração de alguma coisa. Uma tragédia não pode ser normal.

Desde que foi anunciada a primeira morte no Brasil, no dia 12 de março de 2020, causada pelo Sars-Cov-2, tornou-se recorrente a apresentação, nos programas de TV, em todos os canais, vídeos curtos e longos disponíveis nos inúmeros sítios da web, as inúmeras lives, webconferências, matérias escritas em jornais, revistas, histórias em quadrinhos, com o objetivo de explicar em detalhes as possibilidades de contaminação do vírus Sars-Cov-2 e as consequências da Covid-19, doença respiratória causada pelo Sars-Cov-2. Durante esse período foram e continuam sendo apresentadas as formas de contágio e os cuidados necessários para evitar o contágio e a disseminação, mesmo assim, já “somos” mais de 336 mil mortos por Covid-19.

Digo “somos” porque a cada dia, cada um de nós, morre um pouco. Morremos aos pedaços. Morremos porque parte de nós se foi com aquele amigo que já não está aqui. Morremos aos pedaços porque aquele amigo era filho ou pai de alguém. O desconhecido também tinha netos, filhas, irmãs, irmãos, mãe, pai, tios, tias, ou era simplesmente um ser humano que poderia ter sido salvo. Por que não foi salvo? Porque não acreditava no vírus. Porque achava que era jovem, forte, que praticava esportes. Porque precisava trabalhar. Porque a economia não pode parar, etc., etc., etc.

O que chama nossa atenção nesse momento da história da humanidade é, mais uma vez, a gravidade da situação em que nos encontramos. O fato de já termos atingido quase 3 milhões de mortos em 192 países, provocados por um vírus de letalidade baixa. O grave não é apenas deixar de viver. Grave é o valor que nós, pós-modernos, aprendemos a dar à vida. 

Você! Qual é o valor que dá para sua própria vida? E do seu pai? Da sua mãe? Do seu avô, da sua vó, da sua filha ou filho? Qual é o valor da vida do estranho? Daquele ou daquela que você nunca viu? Esse valor não é algo que se calcula com auxílio da calculadora. Nós aprendemos a avaliar os valores como se avalia bens. Como se avalia quanto custam cinco quilos de arroz; um quilo de carne; um quilo de feijão; um botijão de gás – para mais de 110 milhões de brasileiros, cada coisa dessas é fundamental para a manutenção da vida, o que eles e elas conseguem com extrema dificuldade. Quanto custa ir a uma festa, mesmo que seja no pior momento da pandemia?

Mas, o que está em jogo é a vida. Vida como valor maior. Quanto vale isso que é fruto da gratuidade, isso que é sem porquê. Isso que é assim, desse modo estranho e paradoxal. Isso que não tem preço. Mas, não é o sem-valor no sentido daquilo que não foi calculado ainda, ou porque é de graça. É o sem-valor porque não existe nenhuma medida a não ser ela mesma. Quanto vale a sua vida? Quanto vale a minha vida? Não tem preço e é insubstituível. Eu não posso viver a sua, nem você a minha. Minha vida é minha e a sua só pode ser sua. Não há equivalência externa que possa mensurar o valor da vida de qualquer um. Vida é assim, sem preço, mas que depende de outra “coisa” que também dispensa qualquer cálculo: o cuidado.

A vida se mantém como tal apenas se estiver associada a cuidado. Cuidar, em seu sentido primeiro, implica ocupar-se-com; preocupar-se-com. O que significa dizer que nós humanos, somos altamente dependentes do cuidado. Em um primeiro momento, nós vivemos e nos mantemos vivos, à medida que alguém cuida de nós. À medida que alguém dedica um tempo da sua vida, para prestar atenção a outrem, que foi lançado no mundo. Aí está o cuidado. Não é por acaso que ter atenção a, significa dedicar-se zelosamente, com amabilidade a. Nesse ato de cuidar do outro, há a possibilidade de uma dupla transformação. É dupla porque um tal cuidado transforma não apenas o cuidador, mas também, ao mesmo tempo, quem recebe toda a atenção. Vivemos um momento grave.

Grave é calcular o valor vida, como se calcula um bem. Um bem é uma casa, apartamento, veículo, relógio, um sítio, um computador. Calcula-se cada bem e calcula-se vida, como se fossem semelhantes. Talvez estejamos perto demais para enxergar o que se mostra. Ou distantes demais. O momento histórico em que vivemos exige atenção, zelo, cuidado com o(a) outro(a). Não importa quem. Importa apenas cuidar. A Universidade de Washington, nos Estados Unidos, calcula que até 1º de julho teremos mais de 562 mil famílias vivendo a morte de alguém, sem poder se despedir. Morrer também faz parte da vida, mas é preciso afirmar: muitos desses “mortos” que já não se encontram entre nós, poderiam estar aí, vivendo, sendo, rindo, brincando…


Imagem de destaque: PdPics/Pixbay 

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