Uma refutação ao projeto Escola Sem Partido – Matheus da Cruz e Zica

Uma refutação ao projeto Escola Sem Partido

Matheus da Cruz e Zica, em 21/08/2016

 

Parte I

 

O projeto de lei intitulado “Escola Sem Partido” é assinado pelo Senador Magno Malta. O referido proponente do projeto é formado em Teologia, e em sua página oficial na internet se auto intitula hipocritamente como músico e não como pastor, que há anos tem sido sua verdadeira atividade principal no Estado do Espírito Santo, fator importante para que conseguisse se eleger por esse Estado na década de 1990 como Deputado Estadual, Federal e nas últimas duas décadas, como Senador. Por que quer esconder esse elemento de sua biografia em sua página oficial?

Não deixa de ser digno de nota, portanto, o fato de que seu projeto esteja sendo analisado, nessa oportunidade, por um professor tanto da área da Educação quanto da área das Ciências das Religiões. Diante da fragilidade da proposta de lei escolhemos apenas os artigos mais problemáticos de seu projeto para a construção de nossas refutações que se desenvolvem a seguir.

O Art. 2º do referido projeto fala de:

I – neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;

II – pluralismo de ideias no ambiente acadêmico;

III – liberdade de aprender e de ensinar;

IV – liberdade de consciência e de crença;

É importante frisar que tudo isso já está bastante explícito na atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, de 1996, e no texto da própria Constituição Cidadã, de 1988.

Mas o item V aparece como uma genuína novidade aberrante por parte da engenhosa mente do pastor cantor político e do grupo que o apoia e sustenta:

V – reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;

No século XVII, o próprio Comenius já ressaltava, em sua Didactica Magna, uma importância do lugar do aluno na relação de ensino-aprendizagem, retirando-o dessa posição de subalternidade. A concepção das lições de coisas, tal qual defendida por Rui Barbosa em fins do século XIX no Brasil, viria a reforçar em nossa tradição a atenção ao lugar do aluno enquanto foco do processo educativo. O aluno como centro desse processo viria a ser coroado, entretanto, com o projeto da Escola Nova, nas décadas de 20 e 30 no Brasil do século XX.

Embora contestado por grupos conservadores naquele contexto das décadas de 1920 e 1930, inclusive setores do catolicismo mais ortodoxo, é razoável supor que essas conquistas inovadoras do projeto da Escola Nova acabaram vingando na tradição escolar brasileira, mesmo que em gradações distintas dependendo de muitos fatores como a tradição democrática de cada local e região, por exemplo. Podemos afirmar, portanto que entender o educando como uma parte fraca seria uma concepção que retrocede à Idade Média, pedagogicamente falando. Significa um tremendo retrocesso do ponto de vista do desenvolvimento das ideias pedagógicas.

Com relação ao artigo VI – educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença:

Quer dizer que as leis devem limitar até onde o estudante pode ir com sua liberdade, consciência e crença? A partir daqui começa o problema que perpassa quase todo o documento analisado: a falta de historicidade de suas asserções. Falta ao proponente desse projeto o reconhecimento de que as leis, as consciências e crenças variam porque estão sujeitas às contingências humanas e históricas. Nós humanos não somos robôs programados ou programáveis. Cabe exatamente à educação e aos processos educativos estimularem a transformação dos estudantes para que possam expressar, através de suas novas gerações, instrumentos renovados e mais eficientes em termos humanos do que conseguiram as gerações anteriores. Isso em termos de leis, consciências e crenças.

Sobre o item VII – direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções.

Parece até que o pastor cantor senador Magno Malta não teve o trabalho de construir uma linha mínima de coerência entre os artigos de seu projeto. Os itens I e II do artigo 2º de seu próprio projeto de lei entram em confronto direto com esse item VII. Se os pais tiverem o direito de fechar a educação de seus filhos em uma religião e moral de acordo com suas convicções particularizadas, como estariam cumprindo o que está estabelecido nos dois primeiros itens já acima referidos? A saber:

I – neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;

II – pluralismo de ideias no ambiente acadêmico

É também digno de nota o seguinte trecho:

Parágrafo único. O Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero.

“Natural amadurecimento”???, “harmonia com identidade biológica de sexo”???, “ideologia de gênero”???… Um século de elaborações teóricas jogadas no lixo. As argumentações contra esse parágrafo ridículo seriam tão longas que não caberiam nesse pequeno texto que ora tentamos construir. Só nos resta a recomendação da leitura das Obras Completas de Sigmund Freud, de Georges Bataille, de Simone de Beauvoir, de Jacques Lacan, de Natalie Zemon Davis, de Tereza de Lauretis, de Joan Scott e de Judith Butler (dentre muitas e muitos outr@s!!!). Já foi Freud quem disse há quase um século atrás, mais precisamente em 1925, que: “…todos os indivíduos, em resultado de sua disposição bissexual e da herança cruzada, combinam em si características tanto masculinas quanto femininas, de maneira que a masculinidade e feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdo incerto.” Mais uma vez nosso caro pastor cantor senador Malta se mostra como um personagem totalmente anacrônico e afastado do universo da elaboração intelectual, racional e teórica do mundo, em favor de um fanatismo emocional aterrorizante, próprio dos movimentos de caça às bruxas dos séculos XVI e XVII.

Por falar em Caça às Bruxas, vejamos agora o Art. 3º de seu frágil projeto de lei:

As instituições de educação básica afixarão nas salas de aula e nas salas dos professores cartazes com o conteúdo previsto no anexo desta Lei, com, no mínimo, 90 centímetros de altura por 70 centímetros de largura, e fonte com tamanho compatível com as dimensões adotadas.

Onde deveria reinar o espaço de liberdade e de fruição das mentes renovadas das novas gerações, nosso distinto pastor cantor senador Malta quer que estejam estampados cartazes que destaquem exatamente a ideia de LIMITE!!! Isso serviria como alerta permanente aos possíveis desviantes de que a fogueira estaria sempre à espreita. Palmas ao nosso erudito pastor cantor senador! Vamos retroceder aos tempos que antecedem ao Iluminismo, ao Contrato Social, e à Declaração Universal dos Direitos do Homem, que são do século XVIII, posterior portanto ao auge da caça às bruxas.

Com relação ao Art. 5º.

No exercício de suas funções, o professor:

I – não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias;

II – não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;

Ao falar em audiência cativa o pastor cantor senador se mostra bastante afastado da realidade de ensino-aprendizagem no contexto atual, já que os alunos não são mais esses sujeitos sem voz de outrora. Em nossos dias eles falam tanto ou mais que o professor em sala de aula, felizmente. Esse pressuposto, portanto, é bastante difícil de ser levado tão a sério. Nos demais argumentos, esse projeto é desnecessário, pois as garantias que cita de nenhum cidadão ser constrangido por suas crenças e convicções já estão garantidas pela LDBEN/1996 e pela Constituição Cidadã de 1988. Mas garantir que os alunos não saiam impactados das aulas é uma pretensão absurda desse projeto. O professor, através de seu conhecimento e da explicitação de seus pressupostos poderá, sim, exercer influencia nos alunos. Essa influencia pode também não ser tão forte. Isso não depende exclusivamente do professor. A aula é um encontro entre alunos e professores e os resultados desse encontro são sempre imprevisíveis. Os conhecimentos trabalhados no cotidiano escolar são transformados e ampliados nas discussões que ocorrem e nesse movimento os professores também são influenciados pelos seus alunos. Uma questão epistemológica que precisa ficar clara: o conhecimento não é algo estanque que alguém detém em sua completude e o transmite de modo inequívoco, sem “contaminação”. O conhecimento é o próprio exercício de colocar questões. O conhecimento não é um produto, mas um exercício. O Projeto ridículo que temos analisado quer exatamente sufocar essa dimensão nas escolas. Ao invés de Escola Sem Partido, deveria chamar Escola Sem Conhecimento.

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