Uma moeda, uma palavra – outras poesias – parte I

Ivane Laurete Perotti

Belo Horizonte, Minas Gerais. Avenida do Contorno.

Lamurienta, à tarde entregava-se ao limbo das recrudescências. Apinhada de desavisos, entrincheirava os desavisados. Diluía-se na pessoalidade ostracista. Muitos. Reclusos e excludentes. Juntos. Distantes. Fronteiras da ocupação. Do medo. Do ódio. Da pressa. Dos vazios em fluxo contínuo. Diapasão de pés. Sacolas. Rostos. Carros. Drogas. Rumos. Escolhas. Nada do nada. Quase 80% do fluxo da capital tomando a avenida. De assalto. Asfáltico.

Do Contorno ligava nomes. Rumos. Ocasiões. Incompletudes desgovernadas. Gentes no mapa urbano. Sonhos na via de entrada. Saída. Era o que deveria ser. Ou não! Pensava eu, mergulhada nos buracos da realidade. Irreais, à mão pequena. Improváveis, nos últimos tempos. Metafísica vesperal. Quando vi, em primeiro plano, a espada atravessada ao peito. Amazona. Cavalgando a fluida ilusão.

A ponta de papelão alcançou-me: lobo frontal.  Sinal vermelho. Dentro e fora de mim. Olhos de jaguatirica no escuro fechado. Breu. O breu da desrazão. Única sugestão possível no continente incompleto da subjetividade. Dela. Minha. O cabo da espada tocou a janela do carro. “Cuidado frag…”, enviesado. Vermelho. Apelo ausente. Letras garrafais. Gastas. Puídas. Macetadas. Importantes para o norte de alguém.

_ Uma moeda por uma palavra. – a voz firme riscou impressões no chão da avenida.

_ Minha ou sua?

_ Sua, né? Num tenhu pratinha.

_ E palavras?

_ Todas minha.

A conversa acontecia enquanto tentava chegar ao mesmo lugar de minhas falas. Ai! Atrasada no processo. Sorri. Desculpas de uma alienada de si. Minha consciência vazara. Líquida. Osmótica. Dissolvida no quadro inesperado. Catando-me em cena, provoquei:

_ Lhe entrego uma moeda e você me devolve a palavra?

A gargalhada moveu a espada sem fio.

_ Cê é muntu istranha, mulé! Você mi dá uma moeda juntu cum a palavra. Daí, eu multiprico as palavra.

_ E a moeda?

_ Fica cumigu, mulé! Cada uma qui mi pareci!

_ Negócio fechado! Moeda…palavra…hummm…

_ Anda, mulé. U sinal tá qui abri!

_ Vaca!

_ Hummm! Isquisita…! Cumprô tá cumpradu. Si aperpari:

Então ouvi. Como se chovessem ritmos. Sons. Conteúdo de lugar nenhum. De todos.  Ouvi a rouquidão do tempo construindo trilhos. Trilhas. Descarrilando verbos. Aportei música.  Chave de terço.

_ Vaca/vacuda/vacal/ não é vaca de presépio/ é vaca de quintal. / Cuide da sua vida/não ofenda as mãezinha. / Vaca qui dá leite. / Tem fiote/ comi mio/ coisa e tal. / Fim de um final/. Vaca/vacuda/Aprêndi tudu agora/ nesti trancu/ bancu/ du sinal.

A violência das buzinadas jogou-me de volta. Sorri com rasgos nos olhos. Gritei:

_ Me espera aqui! Já volto!

E ouvi, pela janela que chacoalhava o vento:

_ I vô prôndi, mulé? Istranha, essa daí!

Quando a Contorno permitiu, retornei. A pé. De quatro. Caída pela amazona sem dentes, cavalgando instruções. Quixotesca poeta em plena via. Concorrida.  Senoidal. Percorria-me, em ondas, a eletricidade provocada. Por ela. Que mulher estranha! Intrigante. Fenomenal.

_ Voltei!

_ Tô venu.

_ Podemos conversar um pouquinho?

_ Ah! Nem, neném. Cê vai incurtá meus faturamentu. Tô nu trabaiu! Ô!

_ Não! Sim! Quero dizer, podemos conversar por um tempinho e eu lhe…

_ Tamu nessa! Quantas palavra a mulé vai querê?

_ Muitas! Todas!

_ Gulenta! Cê tem pobremas, dona! Podis crê!

_ Está tão na vista assim?

Rimos. Ela fez o preço. Determinou o tempo e sentamos para um café. Ela pediu “barrigudinha”. Só entendi mais tarde, mas não estava ali para catequizar pajé. Menos ainda, a amazona poeta. Queria ouvi-la. Saber de sua vida. De onde era. Não era. Disse-me que a sua vida daria um livro e que ela preferira rasgá-lo antes de escrever. Não escrevia. Não? Não! Lia as palavras na boca dos outros! Lia e “arrepetia”. Na mesma ordem. E a poesia? Era da vida. Da rua. Do balaio vazio. Do medo que ficara lá atrás, nas páginas rasgadas. Quando ainda tinha peito. Mamas? Não! Coragem. As “pedra levarum imbora”. “Sem lêti, sem decumentus”. Paráfrase? “Quiissu, mulé! Intãum num conhéci a músca du Vevê? Nãummmm?” Secara de esperanças. Esvaziara de tudo e todos. Ouvi parte:

“Sem lêti, sem decumentu, caminhanu sobriuventuuuuuuuu, eu vôoooooooo! Eu vôooo! I era quasi dezembruuuuu, eu vôoooooo! U sol reparti us crimeeee, eu vôooo!”

_ Num cantu a parti dus homi.

_ Dos presidentes?

_ Poribidu! Poribiduuu! U homi qui tá lá im cima qué nuis fazê di sola! Di bota! Vai naum, dona! Vai naum!

_ A música…É Caetano, não é? De 1977.

_ É di hôji, mulé! Hôji mermu! Di rocha!

_ Então, você perdeu muito peso.

_ Di um tudu, mulé!  Tudim! Hoje, tô tauba! Tauba di poesia.

_ …

_ Podix crê!  Aix pedraix da vida…sacô?

_ Você tem vários sotaques. Viajou muito?

_ Nunquinha di saí daqui…BH é nóis! daqui ninguém mi tira! Sô tauba…!

As gargalhadas soavam como martelo em bigorna fria. Encantamento. Parceria. Sororidade. Queria sair da rua?

_ Prá quê, mulé dideusu? Levaru muntu tempu pra mi insiná qui pobri é pobri. Só pobri. Agora qui mi acustumei…vô ficanu aqui.

Levantei argumentos. Possibilidades. Ela desconhecia confortos e dignidades há uma vida inteira. Talvez levasse outra para reconhecer direitos. No degredo, criara padrões de resistência: a identidade das calçadas. Das ruas. Das praças e bancos sem aba. Abandono social. Volumosa população em situação de invisibilidade.

_ I… qui mar lhi pregunti… a di quê essa tar di curiosidade?

_ Você…você carrega uma espada e … me fez lembrar de …de outras histórias.

_ Essa ispada tem história, dona. Não eu…só a ispada.

_ Eu gostaria de ouvir.

_ I eu num gostaria di contá!

Quando as gargalhadas abriram espaço, perguntei sobre o que ela gostaria de conversar. A resposta foi:

_ Eu gostu mermu, mermu… é di cunversá c’as palavra.

_ Poderia me explicar? Você parece ter a rima na ponta da língua.

_ Nadinha! As palavra mordi a genti. I só vêm quandu eu chamu.

_ E você chama?

_ Chamu…adispois da pratinha e da primeira palavra.

_ Certo. E elas vêm?

_ Craru qui vêm! Di carrêra. Vêm e si acoloca uma au ladu da ôtra. Às veiz, elas si infilera di ladu. Ladinhu, tendeu?

Declinei do convite para fazer a dança. Ela fez. E cantou a música ao sabor das “foneticidades” declinadas no tempo.  Ali, na mesa encardida daquele estabelecimento, agradeci ter conhecido a amazona e sua poesia de gatilhos. De pinças. Deques. Cortes. Volúpia das ruas ricas em movimentos. (CONTINUA)


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