Surdez e Educação de surdos: Cinderela surda, bilinguismo e artefatos culturais 

Paula Gomides

A educação oferecida às pessoas surdas tem sido tema de debates, de forma mais enfática, desde o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais (Libras) como instrumento de comunicação e expressão das pessoas surdas pela Lei n. 10.436/2002. Desde então, as especificidades educativas da comunidade surda brasileira vem sendo problematizadas, por meio de uma visão sociocultural da surdez, indicando que as pessoas surdas têm uma cultura e identidade relacionadas à visualidade, como uma forma de interpretar o mundo.

Por esse motivo, as experiências visuais devem ser uma tônica no trabalho dos professores, juntamente aos seus alunos surdos, com o ensino da Libras como primeira língua e a língua portuguesa como segunda língua, esse é o princípio da Educação Bilíngue, recentemente incluída em nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Em turmas mistas (compostas por surdos e ouvintes), as atividades devem prezar pela visualidade e contato direto entre professores e alunos surdos. A figura do intérprete de Libras, indispensável no ambiente educacional, deve oferecer suporte aos professores na mediação dos conhecimentos, mas quem leciona é e permanece sendo os professores e professoras.

Nosso texto busca despertar a sensibilidade de docentes que trabalham com alunos surdos, desmistificando a deficiência e fracasso escolar sobre o qual os surdos são lançados. Vocês sabiam que as pessoas surdas, em comparação com as não-surdas ou ouvintes, possuem uma alta taxa de abandono escolar, justamente porque são excluídas linguisticamente neste ambiente? Pensando nisso, resolvemos escrever um pouco sobre os artefatos culturais que podem fomentar debates sobre o aprimoramento das práticas sociais de mediação pedagógica para estudantes surdos.

Assim como as pessoas ouvintes, as pessoas surdas são produtoras de cultura, produzindo um vasto repertório por meio do qual sua cultura é compartilhada. Você já ouviu falar em Literatura Surda? E Folclore Surdo? Pois é, quando pensamos um pouco para além da concepção capacitista da deficiência, podemos visualizar diferentes contribuições de um grupo, que é uma minoria linguística em nosso país, mas que luta para ser reconhecido em diferentes espaços sociais, face à sua história de subordinação, violência e imposição. Abordamos aqui a Literatura Surda como um instrumento de compartilhamento cultural que deixa de ser apenas (re)produzido em espaços restritos de convivência de surdos e passa a ser publicizado, inclusive, de forma impressa, disponível em abordagens educativas.

Assim como os ouvintes, as pessoas surdas têm em seus círculos sociais o compartilhamento de poemas, piadas, adaptações e criações de histórias que buscam reafirmar o domínio linguístico de ouvintes por surdos, mas que mostram também a emergência da coexistência harmônica entre as duas línguas. Vamos falar de algumas dessas histórias. Em Cinderela Surda, os autores Silveira, Rosa e Karnopp (2011) ilustram uma adaptação que já circulava na comunidade surda, mas que ainda não havia sido registrada. A famosa Cinderela de Charles Perrault é uma jovem surda que mora com a madrasta e suas irmãs que são ouvintes. Ela, além de limpar, cozinhar e ser tratada como serviçal, ainda sofre com o preconceito por ser surda.

Mas, Cinderela encontra o príncipe, que também é surdo e está se preparando, com a ajuda de seu professor l’Épée, para assumir o trono no futuro. A surdez não é entendida, ao fim da história, como uma impossibilidade para o convívio social, casamento, trabalho, responsabilidades e uma vasta gama de atividades nas quais os indivíduos se engajam com frequência. Apesar do preconceito sofrido, os personagens principais vencem e se comunicam pela Língua de Sinais Francesa, nos deixando como língua que o “mundo ouvinte” não é um mundo único ao qual todos devem se adaptar. Outro detalhe é o esclarecimento sobre as línguas de sinais serem diferentes entre si, tendo em vista as especificidades dos países nos quais elas se desenvolvem, vejam: na França há a Língua de Sinais Francesa e no Brasil a Língua Brasileira de Sinais.

Sabem de um outro detalhe importante? Em Cinderela Surda, o príncipe, além de receber a educação sinalizada, os funcionários do palácio e também os seus parentes próximos se comunicam em sinais. Esse fato nos deixa a importância da convivência em espaços no qual impera a pluralidade linguística e o respeito, sem a imposição das línguas orais. A obra relatada aqui pode embasar estratégias educativas de ensino da Libras, o que se encontra em diálogo com a Educação Bilíngue e pode contribuir de forma satisfatória para a inclusão social dos surdos. Cinderela Surda é uma das obras relativas à Literatura Surda. Fazemos um chamado à ampliação dos conhecimentos sobre a surdez, nos comprometendo a trazer outras obras de relevância para o reconhecimento identitário e cultural desta comunidade.

 

Sobre a autora 
Pedagoga pelo Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), mestra em Educação pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ) e doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Realiza pesquisas, dentre outros temas, sobre a educação de surdos e literatura surda, com enfoque na surdez sob o ponto de vista cultural e sua relevância para a construção de letramentos em Libras como primeira língua.


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