Sujeito homi em debate:  pensando as masculinidades em uma instituição total

Natalia Estrope Beleze
Flávia Fernandes de Carvalhaes

O Centro de Socioeducação é uma instituição de execução de medida socioeducativa de internação para adolescentes em conflito com a lei. Pensar o CENSE enquanto uma Instituição Total assume um compromisso ético e político, considerando, sobretudo, que essa definição permite compreender sua origem e dinâmicas de funcionamento. Erving Goffman, em sua obra Manicômios, Prisões e Conventos, discorre sobre as características desse tipo de instituição, fechada, totalizadora e violenta, que realiza tentativas sistemáticas de apagamento das subjetividades em meio a intervenções que se pretendem homogeneizadoras.

Neste cenário, compartilhamos notícias de um processo de estágio desenvolvido com adolescentes em cumprimento de internação provisória, que teve o debate sobre gênero como foco, mais especificamente as vivências de “ser” homem. Ao considerar a noção de masculinidade a partir do referencial teórico interseccional, tal como proposto por pesquisadoras dos feminismos negros, consideramos a impossibilidade de definir uma experiência de ser homem em um viés universal. Michael Kimmel problematiza que o colonialismo europeu, de caráter racista e cisheteropatriarcal, influencia diretamente na produção de uma noção hegemônica de masculinidade, pautada na referência do homem branco europeu, de classes média/alta, cisgênero e heterossexual, sendo esta constituída, necessariamente, a partir da demarcação de expressões de masculinidade que são definidas como subalternas, inferiores, colonizadas, materializadas nas figuras, por exemplo, de homens moradores de regiões periféricas, pretos, em situação de rua, gays, bissexuais, trans, entre outres.

Tendo em vista que o modelo hegemônico de masculinidade envolve o acesso a bens materiais e sucesso no mercado de trabalho, é evidente que o jovem negro e periférico se depara com inúmeros desafios em tentar provar e performar sua masculinidade por essas vias. Nesta perspectiva, Lélia Gonzalez denuncia que os maiores índices de desemprego e subemprego atingem a população negra, demonstrando que no Brasil existe uma divisão racial do trabalho. Portanto, a juventude negra vivencia uma série de condições que implicam em desproteções, como, por exemplo, ser sistematicamente perseguido pela violência e repressão policial. Além disso, Gonzalez afirma que circula no imaginário social as imagens do “pivete” e do “trombadinha”, representações que dificultam ainda mais o acesso a oportunidades em um país altamente racista, logo, a essa juventude é ofertada a desvantagem.

Ao trabalhar a temática das masculinidades dentro de uma instituição como o CENSE, a partir de um estágio do 4º ano do curso de Psicologia, foi escolhida a estratégia metodológica das rodas de conversa realizadas com os adolescentes acerca das vulnerabilidades que atravessam os seus cotidianos, como as questões de gênero, sexualidade, corpo, território e raça. Assim, os traçados das intervenções consolidaram espaços de escuta e reflexão acerca desses marcadores sociais de diferença, tendo como centralidade, sobretudo, a análise das vivências do cotidiano.

Os encontros se desenharam a partir de alguns disparadores artísticos, em sua maioria raps e funk, tipos musicais que até pouco tempo atrás eram proibidos na instituição. As músicas que os adolescentes escolhiam geralmente retratavam noções normativas de gênero, como a representação das mulheres a partir da hipersexualização e objetificação, sendo consideradas por eles como “interesseiras” (sic). Tais questões foram problematizadas, tendo em vista que a misoginia é um dos elementos presentes nos processos de construção de noções normativas de masculinidade.

Nos debates com os adolescentes, notamos também que modelos normativos de masculinidades estavam amplamente associados a atividade, branquitude, cisheterossexualidade, poder de compra, agressões, entre outros elementos considerados importantes no processo de “ritualizar” performances de masculinidade consideradas “naturais”. A temática da violência policial também insistiu e sinalizou que a relação entre homens também se organiza em meio a práticas racistas e lgbtfóbicas, bem como escancarou modos como uma masculinidade necropolítica opera no cotidiano institucional da polícia militar brasileira. Na maior parte das situações relatadas, o racismo se materializou na descrição de cenas de preconceitos geradas como os modos de eles se vestirem e de práticas que são hostilizadas por serem amplamente associadas à imagem do “trombadinha”.

Finalizamos, afirmando a importância de ampliação de rodas de conversas com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa sobre as questões pautadas, para que eles possam compartilhar histórias e coletivizar experiências subjetivas. Ainda que ocorrido em uma instituição total, os encontros foram desafiadores, dinâmicos e potentes, sinalizando a importância da autonomeação como um modo de resistência à ordem dos gêneros.

Sobre as autoras
Natalia Estrope Beleze. Graduanda em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina e membro do Coletivo Entretons. E-mail: nataliabeleze@gmail.com

Flávia Fernandes de Carvalhaes – Docente no curso de Psicologia da Universidade Estadual e membro do Coletivo Entretons. E-mail: fcarvalhaes@uel.br


Imagens de destaque: Galeria de Imagens.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *