Letra ausente, sujeitos presentes: pessoas idosas na educação de jovens e adultos – parte 1

Rafael Henrique de Resende Marciano
Andressa Roberta Santos Souza

“[…] até que ponto o idoso é resignado a um papel silencioso de elemento tolerado pelos outros, enquanto espera a morte? Até que ponto os indivíduos anciãos assumem papéis de resignados, recebendo por vezes discursos taxativos e preconceituosos que refletem o abandono social conferido aos mesmos? Como os velhos resistem ao um sistema opressor que intenciona deixá-los sem vez e nem voz?” (DIAS, 2014, grifos da autora)

As indagações de Maria Aparecida do Nascimento Dias (2014) ecoam em nossas mentes neste momento de escrita. Elas estão presentes no trabalho em que a autora se propõe a analisar o fenômeno da velhice na obra do moçambicano Mia Couto, especificamente, em sua crônica “Sangue da avó manchando a alcatifa” (1999). Um trabalho que, em nossa percepção, vale realmente a pena ser lido e apreciado não somente pela qualidade, mas, também, por trazer referenciais epistemológicos apagados e silenciados no contexto das relações de poder.

Tais provocações nos fizeram (re)lembrar, então, as pessoas idosas no Brasil, em especial, aquelas que compõe a nossa Educação de Jovens e Adultos (EJA), que não possuem representação no nome e, por conseguinte, na sigla desta modalidade de ensino, assegurada tanto por nossa Constituição Federal de 1988, quanto por nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996.

Em tese, a nomenclatura “adulto” também serve para representar as pessoas idosas, porém, dentro da modalidade, esse público apresenta caracterizações, expectativas e sonhos que diferem parcialmente dos demais sujeitos. No geral, isso se deve ao fato de que

[…] muitas vezes indivíduos nesta faixa etária se vêem fora das atividades do mercado de trabalho e um tanto sozinhas pelo fato de os filhos, em muitos casos, já terem saído de casa. Sentem-se, de certa forma, à margem da sociedade e podem ver na escola um local para se integrarem novamente (COURA, 2007).

Além da socialização, a escola pode ser um espaço para, segundo a mesma autora, “completar algo que julgavam deficitário em suas vidas” motivados pelo desejo “[…] que muitas vezes se reveste de um sonho, adormecido, de um dia voltar para a escola” (SOARES, 2019). Por consequência, para esse público, a EJA configura-se como um possível instrumento para a prática da liberdade, sendo por meio dela é que alguns deles conseguem integrar-se novamente à sociedade. Já que, mesmo com o aumento estatístico da população idosa no Brasil, há preconceitos sobre o papel deles no ambiente social e limitação das possibilidades de viverem bem em determinados espaços públicos (COURA, 2007).

A EJA – na política, teoria e prática – necessita reconhecer as especificidades dessas pessoas para garantir a efetivação do direito à educação, segundo suas necessidades e possibilidades, já que, anteriormente, esse direito foi negado. Esse fenômeno de negação originou-se das condições históricas de exclusão do acesso à educação, oriundas, algumas vezes, da distância da escola ou da inexistência dela, outras vezes pelo mundo do trabalho ter chegado cedo demais à essas vidas ou, até mesmo, do machismo que ainda impede mulheres de irem à escola e instaura os cuidados do lar como a função fatalista para o gênero feminino.

Entretanto, mesmo hoje sendo um direito social garantido, a EJA ainda enfrenta alguns obstáculos, destaca-se a situação que tanto os adultos quanto os idosos raramente “[…] reclamam para si a reparação do direito à educação violado, sendo mais comum que projetem nas novas gerações as expectativas educacionais não realizadas” (DI PIERRO, 2023). Em relação à alfabetização, Cortella (2016, p. 19) afirma que há aqueles na sociedade que defendem “[…] a não necessidade de investir recursos para alfabetizá-los, em uma espécie de elogio do ‘social/darwinismo”, pois, segundo tais pessoas, seria mais fácil investir nas novas gerações para impedir que o ciclo de exclusão educacional se repita. Em 1993, ele já nos alertava dos perigos de seguir essa lógica que presenciamos recentemente com a pandemia da Covid-19:

Se nós aceitarmos esse princípio na área de educação, em breve nós vamos ter que aceitar também nos hospitais. […] O Brasil tá em crise na área da saúde, então não tem que atender gente com mais de 60 anos porque é perda de recurso. […] Você não precisa mais atender porque vai morrer mesmo! (CORTELLA, 1993).

Desse modo, a continuação deste texto, assim como outros trabalhos acadêmicos que estudam as especificidades do público idoso na EJA, pretende divergir da fala, infeliz, de Darcy Ribeiro ao proferir, em 1990, que deveríamos deixar os “[…] velhinhos morrerem em paz!” (COURA, 2007). Continuaremos o nosso diálogo em breve!

Sobre os autores
Rafael Henrique de Resende Marciano é licenciando em Pedagogia com Formação Complementar em Educação de Jovens e Adultos e Formação Transversal em Acessibilidade e Inclusão, residente no Núcleo da Educação de Jovens e Adultos pelo Programa Residência Pedagógica da CAPES e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Especial e Direito Escolar da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: rafaelhmarc@gmail.com

Andressa Roberta Santos Souza é licencianda em Pedagogia, pertencente ao Projeto de extensão Laboratório de Alfabetização e Letramento (LAL) da Universidade Federal de Minas Gerais, residente no Núcleo de Leitura e Escrita na Educação Infantil (LEEI) pelo programa Residência Pedagógica da CAPES e integrante do Grupo de Estudos do Ações Afirmativas (GEEA) da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: andressaroberta2001@gmail.com

Para saber mais
CORTELLA, Mário Sérgio. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Cortez, 2016.

CORTELLA, Mario Sérgio. Baú do Cortella #11 – Educação, Cidadania e Autonomia – 1993. Canal do Cortella. Disponível em: https://youtu.be/ArV79LMMozE.

COURA, I. G. M. A terceira idade na educação de jovens e adultos: expectativas e motivações. 2007. 134 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.

DI PIERRO, M. C.. A atualidade das políticas de EJA. IN: CORTI, A. P.; CÁSSIO, F.; STOCO, S.. Escola pública: práticas e pesquisas em educação. Santo André, SP: Editora UFABC, 2023.

DIAS, Maria Aparecida Do Nascimento. Um olhar sobre a velhice em “sangue da avó manchando a alcatifa” de mia couto. Anais V ENLIJE… Campina Grande: Realize Editora, 2014.

SOARES, Leôncio. Educação de Jovens e Adultos: direito, acesso e permanência. PRESENÇA PEDAGOGICA, v. 23, p. 18-24, 2019.


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