Acreditaram que a indisciplina em certa escola poderia ser atenuada se fizessem os estudantes cantar o hino nacional antes de entrar na sala de aula. “Esses meninos precisam aprender a amar a pátria”, disse o propositor da ideia, em tom solene.
Acontece que esses estudantes têm origem, em sua quase totalidade, afrodescendente ou indígena. A maioria mora em comunidades pobres ou em áreas de risco. São as maiores vítimas da violência policial. São comuns, na citada escola, os relatos que narram episódios de racismo. “O segurança da loja me acompanhou o tempo todo enquanto estive lá”, diz o adolescente cheio de revolta. Outro afirma ter sido o único a ser revistado ao sair de um estabelecimento comercial.
O lugar das populações pobres – quase que invariavelmente afrodescendentes e indígenas – é a posição mais baixa da hierarquia social. Esse lugar está expresso na fala de uma mãe afrodescendente numa sala de aula da EJA (Educação de Jovens e Adultos), que ocupou quase todo o tempo da aula narrando o caso de agressão que seu filho sofreu de uma mulher branca, que disse “não confiar no seu filho porque ele é negro”. Posição demonstrada nesta praia cheia de gente branca sendo servida por pessoas afrodescendentes e/ou de origem indígena. Naquele homem branco, velho, cujo traje de banho parece não suportar o peso de sua arma de fogo presa naquilo que algum dia parece ter sido uma cintura. Homem armado que olha para quem o serve com olhares intimidadores. Esse lugar é o dos recicladores desse litoral de lindas praias, das crianças que passam pedindo alguma coisa para comer.
A posição afrodescendente é ressaltada na mulher que está passando fome e implora para que alguém compre o produto que ela está vendendo para que possa levar alguma coisa para o filho comer. Está nas mulheres que fazem a limpeza dos apartamentos de veraneio desses homens e mulheres brancos que passam na rua levantando poeira ao dirigir em alta velocidade. Esses trabalhadores da praia, essas mulheres que limpam os apartamentos de veraneio, os recicladores, os pescadores, os comerciantes de bugigangas das areias da praia são os pais e mães dos estudantes da escola que quer as crianças e adolescentes pondo a mão no peito esquerdo e cantando: “pátria amada Brasil”.
Os termos pátria e xenofobia parecem se completar um no outro. Xenofobia é o sentimento de aversão ao que é de fora, é o ódio ao estrangeiro, ao que vem de longe com seus costumes e sua cultura. Pátria é o solo natal, o lugar onde se nasce e ao qual o sujeito se liga por um sentimento de pertença. É o território habitado física, sentimental e emocionalmente. O sentimento patriótico exacerbado pode embasar o ódio ao que é de fora. Pode fundamentar discursos de ódio e desencadear práticas de violência.
O sentimento patriótico é criado e difundido por grupos hegemônicos. Sendo assim, a noção de pátria quase sempre é formulada num sentido particular, de grupo. No Brasil, sabemos que, a despeito da intensa participação de atores afrodescendentes nas lutas pela independência e, portanto, da fabricação da “pátria”, criou-se um discurso sobre a emancipação que atribui todo o mérito aos personagens brancos, atribuindo-se o protagonismo absoluto à figura de Pedro I. Desta forma, forjou-se uma narrativa sedimentada na ideia de que a pátria pertence ao grupo branco, de origem europeia, que são os fundadores da pátria, da nação brasileira.
Não por acaso, a imensa população afro-brasileira permaneceu na condição de cativa após a independência do país. Afrodescendentes continuaram sendo submetidos ao flagelo da escravidão, sem direito à cidadania. Essa população, na perspectiva conservadora, não fazia parte da pátria, era estrangeira, os de fora, devendo, por isso, estar sujeita ao arbítrio dos que assim se proclamaram autênticos patriotas, isto é, os donos da pátria. Sendo assim, podemos dizer, reconfigurando a compreensão sobre o conceito de pátria, que o sentimento patriótico não promove ódio apenas ao estrangeiro, já que ele se volta contra grupos que são subalternizados dentro do mesmo solo pátrio.
A noção de pátria que temos no Brasil foi formulada, portanto, por uma elite branca. Essa elite é a dona da praia, da fábrica, do latifúndio sem divisas; é proprietária dos melhores e mais bem remunerados empregos; de privilégios sociais. Há coerência quando membros dessa elite cantam, com a mão no peito, os versos do Hino nacional que dizem: “Dos filhos deste solo és mãe gentil… Pátria amada Brasil”.
Obrigar meninos e adolescentes a cantarem o Hino nacional, todavia, seria uma forma de ensiná-los a amar suas mazelas. É o mesmo que educá-los para viverem conformados com sua condição de grupo subalternizado, o mesmo que ensinar o cativo a amar seus grilhões.
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