Serões da Mãe Preta: raízes culturais na literatura infantil do Pará

Maria do Socorro Pereira Lima*

Um fato marcante na história da educação no Pará ocorreu no ano de 1896, com a publicação do livro de leitura escolar Serões da Mãe Preta: contos populares para crianças. Sua publicação se deu num contexto em que a instrução pública havia se tornado uma das bandeiras mais importantes da Primeira República, assim como a instrução da criança passava a ser prioridade dos republicanos. Além disso, a publicação do livro corresponde à introdução da literatura infantil de tradição oral nas escolas do Pará.

De autoria do poeta, jornalista e folclorista paraense Juvenal Tavares, a referida obra literária foi autorizada pelo Conselho Superior de Instrução Pública do Pará, que considerou o seu conteúdo adequado para o conhecimento das raízes culturais pelas crianças do ensino primário. Nesse livro, os personagens das histórias são animais revertidos de atitudes humanas: jabuti, veado, papagaio, macaco, entre outros, protagonizam as histórias.

Serões da Mãe Preta teve três edições publicadas, sendo a primeira no século XIX, a segunda no século XX e a terceira no século XXI. Após eu ler a primeira edição lançada no ano de 1896 pela tipografia de Alfredo Silva e mandada adotar nas escolas primárias do Pará, no ano de 1897, analisei o conteúdo dos diferentes contos e cheguei a conclusão, com base no Programa de Educação do Ensino Primário prescrito no Regimento Escolar de 1891, coordenado por José Veríssimo, então Diretor da Instrução Pública do Estado do Pará, que as narrativas trazem lições de moral, hábitos e comportamentos na formação de um cidadão civilizado, ou seja, embora as histórias tivessem uma vestimenta folclórica, permaneciam os mesmos preceitos moralizantes que primavam pelo processo civilizatório embutidos nos compêndios didáticos.

De todo modo, fora esta conclusão, considero marcante para a época na história política do Pará, a autorização da publicação de uma das obras de Juvenal Tavares, como a Serões de Mãe Preta, pois, esse poeta era crítico fervoroso dos governantes e políticos que se prestavam a aceitar decisões estrangeiras, a bem citar os portuguesas que se apossavam das terras paraenses. Neste embate, Juvenal Tavares representa o homem do povo, um lutador e defensor das causas abolicionistas, considerado um pensador “sem papas na língua”; mais temido do que admirado pelas autoridades políticas do Pará. Uma forma de enfrentar seus inimigos foi o seu posicionamento audacioso ao eleger uma senhora negra como protagonista e preceptora de crianças, e a ela dedicar um prólogo na sua obra Serões da Mãe Preta, adotada nas escolas do estado.

Particularmente, considero essa publicação de Juvenal Tavares um fato histórico da educação paraense, justamente por ocorrer em meio às transformações nas bases culturais do Pará, no final do século XIX, com destaque para a formação de entidades culturais propícias para o momento, em que o movimento abolicionista se destacava significantemente para o cultivo das letras, perdurando até o início do século XX.

Nesse contexto, apesar de Juvenal Tavares se destacar como um grande opositor da maioria dos governantes e autoridades na sociedade paraense, a decisão por parte do governo de Lauro Sodré (1891-1897) em adotar a sua obra naquele momento, colocava o Pará em situação vantajosa no cenário nacional, por publicar uma obra que enaltecesse a figura da mulher negra, como a Mãe Preta, tão importante na formação do povo brasileiro, defendida também por Gilberto Freyre.

Por conseguinte, reafirmo que Serões da Mãe Preta seja um fato histórico do século XIX, no Pará, pela própria iniciativa do estado em lançar no cenário nacional uma literatura genuinamente brasileira, com raízes amazônicas, além de produzida por um autor paraense, ainda que fosse Juvenal Tavares, negro, temido e indesejado nas relações partidárias que governavam o estado, na época. Curiosamente, esse poeta e jornalista e defensor de causas populares já tinha sido criticado pelo então Diretor da Instrução Pública do Pará, José Veríssimo, que o avaliava muito arcaico e romântico ao extremo e achava que para melhorar a receptividade de sua obra, ele deveria ultrapassar esses pontos.

Mediante as condições positivas na tomada de decisões políticas do estado em ralação ao projeto nacional de educação, tudo leva a crer que os desafetos políticos de Juvenal Tavares tivessem que baixar a guarda e aceitar os contos que narravam costumes e tradições da cultura amazônica, que já tinham sido publicados semanalmente em jornais que circulavam na capital paraense, mais precisamente nos jornais que Juvenal Tavares atuava como jornalista e redator. Assim, reunidos os contos populares, surgiu Serões da Mãe Preta: contos populares para crianças.

Desta feita, amparado na Lei 384, de 27 de abril de 1896, o governador Lauro Sodré, no final de seu mandato, recomendou a adoção do livro nas escolas, levando em conta o conteúdo do livro que narrava histórias de animais próprias ao público infantil, porém, vale enfatizar, que os personagens eram animais com comportamentos humanos, onde se pode apreciar gestos de honestidade, disputa entre os mais fortes e os mais fracos, espertezas e inteligência, e consequências negativas para sujeitos preguiçosos.

A produção de livros e manuais didáticos e de novas estratégias de ensino e formação de professores, previam a superação do que os republicanos chamavam de atraso e degradação herdados do período Imperial.

Assim, com a publicação de Serões da Mãe Preta, em 1896, no governo de Paes de Carvalho (1896-1900) que sucedeu o de Lauro Sodré, a obra foi adotada, em 1897, nas escolas do Pará como livro de literatura infantil, destacando não somente a iniciativa do estado no cenário nacional, mas também Juvenal Tavares, junto a Silvio Romero e Couto de Magalhães, como precursores da literatura do gênero contos populares de tradição oral, no Brasil.

Referência

LIMA, Maria do Socorro Pereira. Infância, educação e criança: um estudo histórico-literário nas obras Serões da Mãe Preta e Chove nos Campos de Cachoeira (1897-1920). 2015. 259 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Educação, Belém, 2015. Programa de Pós-Graduação em Educação.

* Profa. Dra. Adjunta da Faculdade de Educação e Ciências Sociais. Campus Universitário de Abaetetuba. Universidade Federal do Pará


Imagem de destaque: Capas da publicação Serões da Mãe Preta de 1896 (Esq) e 1990 (Dir.). Fonte: Setor de obras raras (CENTUR)

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