Nilma Coelho¹
Seria esse título ultrajante? Uma provocação? Uma constatação? Judith Butler, escreveu um livro intitulado Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Nesse livro, Butler discute acerca das vidas que são passíveis de eliminação e extermínio. Um conceito muito refletido por essa autora é o de reconhecimento e, para tanto, convoca-nos a pensar ontologicamente. Ela propõe pensarmos o ser, não como uma categoria universal, mas pensar o ser como parte das relações/operações de poder; para ela, pensar o ser é relacional, é pensar o outro/alteridade. Nessas operações de poder, Butler ressalta a precariedade da vida e afirma que é por meio delas que algumas vidas são merecedoras de luto e de proteção e outras não. (…) Há “sujeitos” que não são exatamente reconhecíveis como sujeitos e há “vidas” que dificilmente – ou, melhor dizendo, nunca – são reconhecidas como vidas. (BUTLER, 2015). Em que situações essas “vidas” excedem as condições de serem reconhecidas? Perguntaria Butler. A precariedade é condição de toda vida; nascemos precários e apenas sobrevivemos porque existe uma “rede social de ajuda”. É na precariedade que nos encontramos. A precariedade nos impõe viver em sociedade. A vida de alguém está sempre em relação à vida de outro alguém. Apenas em condições nas quais a perda tem importância é que o valor da vida aparece efetivamente. Dessa forma, são o reconhecimento da precariedade da vida e a pressuposição de perda que fazem com que uma vida mereça ser vivida, seja passível de luto. Por outro lado, uma vida que não é preservada para ser vivida, que não traz nenhum reconhecimento, não será uma vida enlutável. Os amigos veganos nos chamam a atenção para a nossa compaixão seletiva. Não é imaginável que o cachorro ou o gato que vive conosco seja servido à mesa, mas a mesma sorte não têm os frangos, os bois e os animais tidos como comíveis.
Não raro, quando nós professoras de história, trabalhamos com o período medieval, as/ os estudantes se indignam com a caça às mulheres/bruxas. No entanto, em 15 de fevereiro de 2017, no Ceará, Dandara dos Santos, travesti, 42 anos, foi espancada, apedrejada e executada a tiros, à luz do dia, com direito a filmagem e divulgação pelos próprios agressores. Em 14 de fevereiro de 2019, um jovem negro de 19 anos, Pedro Gonzaga, foi morto pelos seguranças de um supermercado no Rio de Janeiro, por sufocamento. Em 14 de agosto de 2020, Matheus Pires, um motoboy entregador de delivery, foi humilhado por um condômino por ser negro. Em 20 de outubro de 2020, o Ministério da Saúde convoca veterinários para “atender” pessoas em situação de rua, pois os médicos que foram procurados se recusam a atendê-los. Em 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra, João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, 40 anos, é espancado até a morte. Dados do Atlas da Violência 2020 apontam que os homicídios da população negra aumentaram em 11,5% em dez anos. O relatório aponta ainda que em 2018 os negros representam 75,7% das vítimas de todos os homicídios. O Brasil é apontado como o país que mais mata travestis e pessoas trans no mundo. A expectativa de vida de uma travesti é em média 35 anos, a maioria sem ensino fundamental ou médio. Ainda, o Brasil é o 5º país no ranking dos mais violentos do mundo para mulheres. Treze mulheres por dia são vítimas de feminicídio. As mulheres vítimas de feminicídio têm idade de até 30 anos, muitas também sem o mínimo de instrução e/ou com ensino fundamental ou médio.
O que essas pessoas têm em comum? Todas são sujeitos de direito da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Todas sofreram violações com plateia, tal qual nas arenas romanas.
O que nos separa das pessoas que viveram na Idade Média ou nas arenas romanas? Nada. Continuamos espetacularizando vidas e corpos que não são passíveis de luto. E por quê? Uma das respostas encontra-se na nossa compaixão seletiva. Nesse jogo antropocêntrico, alguns são mais humanos que outros. Por isso o aforismo: “Direitos Humanos para humanos direitos”. Sabemos muito bem quem são considerados os humanos direitos – aqueles que não transgridem a norma, o que está prescrito. Transgridem a norma todos, todas e todes que não vivem conforme a prescrição do branco, hétero, machista, patriarcal. Todos esses são corpos considerados abjetos.
Ao mesmo tempo em que esses corpos abjetos são jogados fora, são também formadores do sujeito. Esses corpos abjetos, calejados, “foracluídos” se encontram na precariedade da precariedade. E não bastam mais a tolerância e o respeito; é preciso o reconhecimento – RE CON O (S)CER. Estar com o Ser, conhecê-lo e REconhecê-lo. Por isso, me traz alguma esperança o movimento que se espalhou pelas cidades em torno do ocorrido no supermercado. São corpos que se encontraram na precariedade para exigirem o RECONHECIMENTO.
1 – Mestre em Educação pela Linha de EJA do Promestre/FaE/UFMG, professora, advogada e feminista.
Imagem de destaque: Partido dos Trabalhadores – Flickr