Por outra gestão da pandemia, abandonemos a noção de grupo de risco

Rogério Diniz Junqueira *

Marco Aurélio Máximo Prado**

O Brasil ultrapassou oficialmente as cifras exorbitantes de 6 milhões de pessoas infectadas por Covid-19, 170 mil mortes, e não sabemos quantos “recuperados” deverão lidar com sequelas permanentes. Ao sabor de uma gestão autocrática, desordenada e inconsequente da pandemia, as taxas de transmissão do vírus voltam a níveis alarmantes, as UTIs se abarrotam, e as curvas epidemiológicas se empenam, sem nunca terem sido achatadas. Recusando-se a ouvir as comunidades escolares, gestores públicos, juntamente com parte da mídia e do mundo empresarial, buscam abrigo em manobras retóricas, expedientes estatísticos e adotam soluções improvisadas.

Vivenciamos uma catástrofe sanitária, antecedida pela pior crise social e econômica em décadas e agravada por políticas ultraliberais e reacionárias, com retrocessos em todas as áreas. São exemplos eloquentes dessa regressão o empenho para reduzir o orçamento da educação, as mudanças impostas à Educação Especial e ao Programa Nacional do Livro Didático, o ataque à liberdade docente e o veto a políticas de promoção dos direitos humanos e de enfrentamento a preconceitos, discriminações e violência racial, sexual, de gênero. Instaura-se um quadro de barbárie que pode atingir cada pessoa e afetar a nossa capacidade de elaborar individual e coletivamente nossas dores.

Diante de desmandos e descasos, ganha terreno a compreensão quanto à necessidade de incentivar e incrementar a participação e que, para isso, é indispensável relembrar debates e revalorizar saberes construídos ao longo de batalhas coletivas. Podem contribuir para reorientar a gestão ética, social e política da pandemia da Covid-19 retomar fundamentos coletivamente edificados para responder à pandemia do HIV/aids, entre os anos de 1980 e 2000 no Brasil,.

Aprendemos no caso do HIV/aids que a condução da resposta ético-política de uma pandemia não pressupõe apenas planos de ações públicas bem organizados. Envolve uma complexidade de atores sociais, instituições, organizações, interesses, concepções e territórios. Em tal caso, narrativas biomédicas, tratos médicos, pedagogias, crenças e conhecimentos híbridos podem incidir na modelagem de medidas preventivas e nas decisões políticas sobre as formas de lidar com doenças coletivas. A coordenação de uma gestão pode desvelar a nossa capacidade como sociedade de reconhecer as facetas das vulnerabilidades históricas, valorizar as solidariedades construídas e reafirmar a política social como um direito.

A pandemia do HIV/aids recebeu da sociedade brasileira respostas variadas ao longo do tempo. Entre as décadas de 1980 e 2000, assistimos à construção de políticas de enfrentamento, fruto da mobilização social comunitária, balizadas por princípios como solidariedade, reconhecimento à diversidade, cidadania e saúde como direito básico fundamental. Amalgamadas em contextos sociais, políticos e econômicos adversos, as respostas envolveram inclusive as políticas de educação.

Na esteira de embates e polêmicas que atravessaram todo esse período, logrou-se ressignificar, sobretudo a partir dos anos 1990, um dos pontos nodais das ações e medidas de relacionadas ao HIV/aids: a noção de “grupo de risco”. Essa nomenclatura, vaga e imprecisa foi utilizada no começo daquela pandemia. Seu emprego foi alvo de intensas críticas por ensejar percepções equivocadas do alcance da pandemia, favorecer o enquadramento da discussão no terreno da moral sexual e contribuir para estigmatizar ainda mais as pessoas diretamente atingidas. Isso deixou rastros profundos, pois, apesar da identificação do agente causador da síndrome e das várias formas de transmissão, ao longo dos anos de 1990 ainda era recorrente o emprego dessa noção, acompanhado da culpabilização de gays, prostitutas e usuários de drogas pelo advento da aids. Mesmo perdendo força e espaço, a noção não foi abandonada. 

“Risco” é uma categoria epidemiológica que indica as probabilidades de um corpo ou um grupo com determinadas características ser afetado por algum tipo de enfermidade em maior escala do que outros. Entretanto, a noção passou a respaldar um discurso que remete a uma compreensão de “grupo de risco” permeada pela moralidade sexual. Desde então, a cada vez que emerge, ela  tende a operar como um vetor de discriminação e estigmatização de grupos sociais a que venha se referir, realçando preconceitos e alimentando processos de classificação e marginalização.

Poderíamos elencar os efeitos deletérios da utilização da noção “grupo de risco” para instrumentalizar uma gestão ético-política catastrófica da pandemia no Brasil. Dentre tantos possíveis exemplos, o da administração interessada em realizar, o mais rapidamente possível, a “abertura inteligente das escolas” fala por si.

Esse acionamento da noção de “grupo de risco”, em um cenário de desempenho sofrível do Estado na condução das políticas sociais, contribui para deslocar a responsabilidade relativa à gestão da proteção, do cuidado e da segurança sanitária para as famílias e os indivíduos, sobretudo as mulheres. “Tome todos os cuidados”, “lave bem as mãos”, “use álcool em gel”, “use máscara”, “mantenha o distanciamento social”, “isole as pessoas do grupo de risco”, “os pais devem assumir a responsabilidade”. Sem diálogo real e nenhuma coordenação, gestores públicos relegam à população o ônus da resposta que impõem frente à epidemia.

 

Mais uma vez, obliterando qualquer discussão que considere fatores como classe social, condições sociais de existência, relações de gênero e outros processos de hierarquização e marginalização, a noção de “grupo de risco”, associada a uma narrativa  apoiada em noções individualistas, reitera um discurso de cuidado especial que deporta o sujeito à própria sorte – um “salve-se quem puder” em que cada um age conforme suas possibilidades e posições na estrutura social, obrigando a maioria a um gerenciamento de risco incalculável e inaceitável.

 

A ideia de “grupo de risco” age como fator de naturalização e banalização das mortes. E até de um certo negacionismo da própria existência da pandemia. “Morreu porque era de risco”. “Morreria de qualquer maneira”. “Morreu de Covid-19 ou com Covid-19?”1. Desassocia-se a morte de sua causa etiológica ou responsabiliza-se a vítima. Aquilo que deveria ser indicador de cuidado vira predicado moral e opera como argumento,2 como se uma doença pré-existente ou a faixa etária representassem um passe-livre para a morte. Pertencer presumivelmente ao imaginário “grupo de risco” torna a causa mortis certificada pela perda de tantas vidas, invisibilizando a responsabilidade de uma coordenação ético-política por parte dos poderes governamentais.

* Pesquisador do Inep – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

** Pesquisador do Nuh/UFMG – Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da Universidade Federal de Minas Gerais.


Imagem em destaque: Adam Nieścioruk / Unsplash

 

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