Repensando os Anos Iniciais na formação do Educador Camponês
A pedagogia, a ciência formadora de profissionais aptos a atuarem em diferentes níveis de ensino é um relevante espaço de discussão teórica do conhecimento educacional objetivando efetiva revisão do sistema de educação e reformulação das políticas pedagógicas. Atualmente os cursos ofertados vertem para uma formação focada na gestão dos serviços profissionais de apoio escolar e na gestão de espaços escolares e não escolares. Este foco empresarial encontra-se voltado a atender as demandas de educação para o trabalho, dentro da égide urbano-industrial capitalista. Assim, demandas especialmente humanizadoras e processos inclusivos que fundamentam a educação em sua essência são negligenciados.
Uma das muitas negligências refere-se ao currículo escolar e à formação docente específica para o atendimento às populações camponesas marginalizadas ao longo da história da sociedade brasileira. Neste sentido, as discussões sociais sobre a legitimidade da educação do campo em todo o país vêm ganhando força nas últimas décadas. Algumas universidades brasileiras têm se instrumentalizado para ofertar permanentemente cursos interdisciplinares de formação de docentes camponeses nas áreas de ciências da vida e natureza, ciências sociais e humanidades, letras, literatura, artes e matemática para atuação nos anos finais do ensino fundamental. Mas lamentavelmente, os cursos de formação para os anos iniciais do Ensino Fundamental ainda engatinham por todo o país, com pouca oferta regular.
Atualmente a proposta político-pedagógica dos anos iniciais do ensino fundamental na escola regular tem seu currículo pedagógico baseado no ensino de artes, ciências/ecologia/saúde, cultura religiosa, educação física, geografia, história, literatura, matemática e português. Mas é preciso ir além destes conteúdos básicos. Principalmente quando nos referimos à necessidade de formação interdisciplinar em pedagogia para o desenvolvimento cultural, político e econômico da sociedade brasileira. É preciso uma nova proposta de organização escolar e gestão da escola camponesa, compreendida aqui como um espaço de pertencimento, gerado e concebido como no útero de uma matriz cultural pelo camponês, que é gestor do seu território, da sua identidade e das suas relações e interações com a natureza. Novos projetos que preparem política e pedagogicamente novos pedagogos humanamente capacitados a atuarem em processos de ensino/aprendizagem, utilizando os conhecimentos específicos e tecnológicos para o desenvolvimento cultural, político e econômico das populações camponesas.
Nesse sentido, são necessárias novas gestações! Construir a educação do campo, nestes termos, compreende conceber a identidade enquanto fonte gestacional do pertencimento e da cultura camponesa, entendendo a natureza, como fonte mantenedora da economia e da sustentabilidade camponesa, e legitimando o território enquanto fonte gestacional da política e da legitimidade camponesa. Assim, além de entender os diferentes fundamentos (antropológicos, filosóficos, históricos, legais, psicológicos e sociológicos) da educação brasileira, assim como suas metodologias (alfabetização e letramento, educação especial inclusiva, educação infantil, educação de jovens, adultos e idosos, ensino fundamental, ensino médio, ensino normal/magistério, ensino profissional), faz-se necessário ampliar os pressupostos teóricos e metodológicos de seu campo de ação. No espaço da escola, são gestados processos educacionais de resignificação e transformação da sociedade vigente. Novos paradigmas estão sendo gestados interinamente no útero escolar. Novos processos que se refere à didática, à gestão e à avaliação educacional estão sendo equacionados. Assim na cultura político-econômica da atualidade, Economia, Política e Cultura devem permear os novos currículos, principalmente aqueles voltados a atender aos camponeses.
As ciências ambientais podem ajudar na identificação dos impactos urbanos sobre o campo fomentando a gestão social de projetos urbanos e rurais. Existe uma dicotomia entre campo e cidade que precisa ser desconstruída. Faz-se urgente e necessário uma pedagogia camponesa com habilitação em educação econômica dando ênfase à gestão ambiental de espaços e ambientes rurais. Se os recursos naturais são fonte dinamizadora da economia camponesa faz-se necessário que a análise ambiental se vincule com a educação do campo e oriente o conhecimento e apropriação da diversidade ambiental no meio rural, através da ecologia e seus múltiplos ecossistemas: antrópicos, aquáticos e terrestres. Deve-se pensar num currículo interdisciplinar atrelado às ciências exatas, biológicas e da natureza para propiciar um ensino da geografia rural, de ciências agrárias, de ciências biológicas efetivando estudos ambientais dos sistemas da natureza. Este currículo por sua vez deve se fundamentar na estatística aplicada às ciências socioambientais, no direito agrário e ambiental, na química ambiental e na geografia de recursos ambientais. Os fundamentos de meio ambiente devem permear a organização profissional do pedagogo orientando-o ao adequado planejamento pedagógico para a educação básica do/no campo, fomentando a gestão ambiental enquanto provedora de novas alternativas de sobrevivência econômica construindo elos efetivos de sustentabilidade rural.
No mundo capitalista, os projetos econômicos rurais carecem de uma diretriz ambiental delineando acidentes ambientais e poluição no ambiente rural. Basta lembrar-se do agronegócio e dos agrotóxicos e de suas ideologias mercadológicas. Quando se fala na gestão ambiental rural, faz-se necessário entender e avaliar diferentes impactos ambientais rurais permitindo a elaboração e a gestão ambiental de projetos rurais. As metodologias da auditoria, da certificação, do controle, dos planos, e o uso das tecnologias são realidades potencializadoras no ambiente rural. Formar professores atrelados às metodologias educacionais de proteção da biodiversidade rural, de recuperação de áreas naturais degradadas, de preservação dos recursos hídricos e de gestão dos resíduos sólidos, significará a formação de novos alunos mais comprometidos com suas realidades socioambientais. Assim a gestão ambiental se efetivará dentro dos sistemas agrícolas, dinamizando-os, potencializando, promovendo inclusão, geração de renda e qualidade de vida.
Pensar uma pedagogia camponesa exige pensar numa habilitação em educação política com ênfase em historicidade dos movimentos sociais do campo com conteúdos formadores de introdução à história, à cultura e à historicidade. Pensar a educação camponesa exige pensar num trabalho socioambiental, evidenciando a necessidade da educação ambiental na legitimização dos processos de historicidade camponesa. Historicamente através do trabalho, o camponês se apropria de seu ambiente humanizando-o. Pensar em educação camponesa exige a compreensão dos ambientes tecnológicos que dominam a sociedade pós-contemporânea. Como se reafirmar como camponês no mundo urbano-industrial tecnológico que amplia seus tentáculos por todo o mundo? No mundo das tecnologias, os camponeses são mais que sobreviventes, são seres revolucionários e enérgicos e a primeira revolução camponesa ocorre no advento agrícola da antiguidade e prossegue pela história humana até a atualidade.
É preciso afirmar que a educação camponesa é portadora de uma história e de uma historicidade. Na reconstrução da identidade e legitimidade camponesa faz-se necessário compreender diferentes fundamentos históricos nos processos rurais da antiguidade, do medievo, do período pré-colonial e da colônia, evidenciando permanências e rupturas. Ao professor camponês é indispensável a compreensão da história das culturas ocidental e oriental, africana e afrobrasileira, dos povos indígenas e principalmente a história da sociedade camponesa no âmbito da cultura medieval, quando historicamente ocorreu uma ruralização do mundo, posteriormente reformulada pelo Iluminismo e pelo Renascimento. O agrário, o agrícola, o camponês e o rural continuam sendo desconsiderados no mundo moderno. Esta descaracterização acontece, e se consolida, de modos e intensidades diferentes, mas que marginalizam e excluem em mesma intensidade.
Assim, no ensino camponês faz-se indispensável, e necessário, que a história do Brasil, a história da África, a história contemporânea, a historiografia brasileira sejam parte integrante do conteúdo curricular para que estes possam se entender e compreender suas mudanças e construções nestes processos de outros tempos e espaços, mas que também foram ou são rurais. No âmbito da história da arte espera-se que o educador compreenda a existência de uma estética camponesa, enquanto identidade de um povo em diferentes lugares/paisagens que se insere historicamente entre a arte ocidental e a arte oriental. Então diferentes metodologias artísticas e culturais camponesas, afrodescendentes e indígenas se legitimam como patrimônio cultural material e imaterial da coletividade. Por último, pensar nisto implica em novas possibilidades como a gestão turística desses novos potenciais possíveis a partir da realidade camponesa brasileira, seus contornos e nuances. É inegável sistematizar processos de gestão cultural dessas novas possibilidades, delineando novas perspectivas. É a educação cultural contribuindo para a maximização de uma cultura inclusiva, diversificada e democrática.
Por fim evidencia-se a necessidade de uma pedagogia camponesa com habilitação em educação cultural e ênfase em linguagem, cultura e corporeidade do mundo rural. Quando se fala em inclusão de camponeses, os estudos culturais socializam diferentes currículos, ambientes e práticas culturais. A diversidade floresce em múltiplas relações humanas: comunicação humana, corporeidade teatral, expressão corporal, festividades, literatura infanto-juvenil, ludicidade, manifestações populares, música, etc. Esta diversidade cultural inclusive se deve a riqueza das relações étnico-raciais tecidas e entremeadas no âmbito da cultura escolar promovendo uma educação para as diferenças, para a aceitação e para a celebração do outro. Inclusive, todo o processo de redemocratização pelo qual passa a pedagogia se deve ao advento dos estudos dessas relações e das contribuições étnico-raciais da cultura afro-brasileira e da cultura indígena na formação do Brasil e do camponês brasileiro. Hoje a formação de professores se fomenta filosófica e eticamente numa educação especialmente cultural com diferentes metodologias de ensino. Assim como no multiculturalismo há diferentes culturas como a cultura surda, por exemplo, faz-se necessário a organização e reorganização do trabalho pedagógico em sala de aula utilizando-se de materiais didáticos e recursos de ensino atrelados é realidade pedagógica dos educandos. Quando se fala em Língua e Linguagem, o mundo rural evidencia-se pelo dialeto rural, uma forma particular de apropriação e resignificação da língua portuguesa. O dialeto rural evidenciou-se através da literatura infanto-juvenil, com os escritos de Monteiro Lobato. Assim como a LIBRAS evidencia um jeito de ser e estar no mundo, o dialeto também o é, sendo necessário que a educação o legitime enquanto categoria existencial e cultural dos camponeses. Não se deve jamais confundir dialeto como erro ortográfico e/ou gramatical. São discussões diferentes que se materializam no âmbito dos filólogos. Assim como as questões étnico-raciais são ainda fontes de preconceitos no país, a ruralidade e a diversidade religiosa também o são, necessitando de novos mecanismos de desconstrução dos absurdos e abismos ainda existentes. No caso dos camponeses, estes também se autoafirmam através das expressões físicas, da musicalidade e do lúdico nas festas juninas.
Nota-se que as ciências da educação contemporânea levam em contam diferentes demandas existenciais e estágios culturais na gestão dos processos educativos. Sendo assim a formação inicial em educação camponesa estabelecida a partir da infância, deve ser verdadeiramente a principal responsabilidade das políticas públicas e dos projetos sociais a serem pensados. A didática, a avaliação e as metodologias de educação camponesa devem direcionar a gestão educacional de espaços escolares e não escolares nos quais se atendam os estudantes camponeses. Sociologicamente, a educação deve promover espaços que possam ir além da simples aprendizagem, se efetivando como locais de contingência de idéias e possibilidades de ação e inclusão, para todos, sem distinções. Este deve ser o único marketing a ser utilizado a favor de uma sociedade humana, inclusiva, justa e sustentável.
Imagem de destaque: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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