Rotina em tempo de Pandemia: duas miradas sobre as mesmas questões

Joaquim Ramos

Neste tempo, marcado pela insegurança diante de um vírus que espalha a morte planeta afora e que temos o desprazer de assistir pessoas zombando da morte de outras e o próprio presidente escarnecendo do sofrimento da população, podemos afirmar com todas as letras, que se trata de um tempo difícil de entender e, mais ainda, quase impossível de explicar. Parece pesadelo constatar que bem ao nosso lado, moram a insensatez, a ignorância e a covardia. É terrível presenciar alguns empresários implorando para que seus negócios sejam reabertos em meio a uma insegurança generalizada de quem para eles trabalham. Paramentados com as cores da bandeira brasileira, no interior de seus carros – quase todos, importados – essas pessoas não titubeiam em exigir em alto brado que “queremos trabalhar”. Não são eles que querem trabalhar, o que reivindicam é trocar a vida dos que para eles trabalham – quantas forem necessárias – pelo lucro. Na prática quem ocupa o front dessa guerra são os desprovidos do capital. Para os donos do dinheiro, essas pessoas podem morrer, porque algumas vidas não importam.

Ao contrário dessa onda conservadora e esquizofrênica, as pessoas com o mínimo de sensatez reconhecem que todas as vidas importam e por isso, a nossa força para sobreviver deve fazer reverberar a necessária pulsão de vida, pois “se eles combinaram de nos matar, nós combinamos de não morrer”, como salienta Conceição Evaristo. E como a ferramenta da nossa resistência, é diametralmente oposta aos equipamentos bélicos daqueles que insistem em nos aniquilar, a receita para enfrentar e resistir nos chega por meio daqueles e daquelas que apregoam o amor em forma de poesia, pois: “isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é, ainda vai nos levar além”, conforme nos lembra Paulo Leminski. A senha é essa: se essa gente do mal insiste em nos soterrar, não podemos esquecer de que somos sementes e resistência.

Para compreender melhor esse momento de “isolamento social”, de insanidade generalizada na política e de desrespeito à vida humana… nesse tempo em que a circulação de um vírus nos coloca – a todos, sem distinção – reféns de uma guerra contra o (in)visível é que conversei com a professora Sandra Pereira Tosta* e com o professor Mauro Passos**. A nossa prosa foi sobre como os dois têm vivenciado o isolamento social no cotidiano de suas vidas; como eles têm lidado com as relações fora do ambiente doméstico e como enxergam a necropopolítica do atual governo em tempos de aniquilamento. Por fim, eles falaram também sobre as perspectivas de futuro.

A rotina desses dois professores – assim como a rotina da maioria de todos nós – antes do isolamento social, se encaixava na esfera da dita “normalidade”. Além da livre circulação – que atualmente, ganhou valor estratosférico – eles desenvolviam atividades de trabalho, lazer, afazeres domésticos, relações virtuais, projetos acadêmicos, dentre outras. No tête-à-tête, em suas relações interpessoais, a vida transcorria na mais tranquila normalidade, no entanto, com a necessidade do isolamento social – de acordo com eles – foi necessário desenvolver estratégias para continuar fazendo quase tudo, agora, considerando um fator adicional vinculado à limitação do ato de ir e vir.

Ambos estão vivendo o período de isolamento fora de Belo Horizonte (Sandra, em Brumadinho/MG e Mauro, em Itaguara/MG). Por telefone, eles relataram que estão se esforçando o máximo para permanecerem dentro de casa. Quando necessitam sair, lançam mão da máscara e do álcool em gel e, assim, o que era ordinário, como sair, sem tantas preocupações com a saúde, passou a ser algo extraordinário. Passou a significar questão de vida ou morte.

Eles relataram que foi preciso reinventar a rotina, buscando formas diferentes de interagir com as pessoas, mas salientaram também que graças às inúmeras tecnologias, é possível a manutenção de “quase” todas as formas de interação com o mundo exterior. O professor Mauro tenta se afastar das notícias ruins que ocupam os canais televisivos. Nesse período de pandemia, ele enfatiza que “há muita repetição em cima das tragédias e há pouco esclarecimento. Deste modo, ainda existem pessoas acreditando que tudo isso é uma invenção. Se fosse uma ferida aberta, seria mais fácil para as pessoas entenderem, em especial as pessoas mais humildes, mas estamos lutando contra um inimigo oculto”.

Para a professora Sandra, com o sistema de entrega em domicílio, é possível receber boa parte do que é consumido no dia a dia, na porta de casa, no entanto, ela destaca que não é assim que vive a grande maioria da população brasileira: “vivemos em um país desigual e desumano, onde milhões de brasileiros estão enfrentando condições precárias e se expondo em filas quilométricas para terem acesso aos recursos do fundo emergencial. Em muitos casos, esse é o único recurso para a sobrevivência de milhares de famílias”, salienta.

Em Itaguara – onde o professor Mauro se encontra, atualmente – a maioria das pessoas tem observado as normas de segurança e utiliza máscaras. Não há aglomeração de multidão no centro da cidade, os bares estão fechados e o prefeito tem demonstrado muita preocupação com a saúde dos munícipes. Contudo, em nível nacional, ele avalia que o momento político atual é caótico e o governo federal tem demonstrado total descaso com a saúde do povo brasileiro. De acordo com Mauro, esse é um governo inoperante, totalmente ausente das questões cruciais que assolam a população, de modo mais específico, um governo totalmente desrespeitoso com a classe popular e com os mais necessitados. Deste modo, ”o homem que ocupa o cargo de presidente não consegue fazer uma declaração de solidariedade às famílias das pessoas mortas ou que estão morrendo nos hospitais país afora. Há países bem mais pobres que estão tratando essa pandemia com muito mais eficiência, inclusive, aplicando dinheiro em cultura, na perspectiva de melhorar a saúde mental da população, neste momento de enclausuramento forçado”, reitera.

Já a professora Sandra Tosta afirma que, desde o golpe de 2016, o país convive com governos fascistas. Para ela, não podemos falar sequer de um governo neo ou ultra liberal, o que se vive hoje no Brasil é o fascismo e a turma que está, eventualmente ocupando cargos no governo federal, quase sem exceção, é inconsequente e representa o protótipo de outro tipo de vírus: o da truculência, do desrespeito, da mentira, da insensatez, da violência e do genocídio. Sandra destaca também que “hoje, temos um presidente que quer inocular um medicamento na população, contraindicado por especialistas e pela Organização Mundial da Saúde, o que nos coloca em um regime de genocídio coletivo. Justamente neste momento, temos, possivelmente, o pior governo da história do Brasil!”.

A professora Sandra reconhece que apesar de ser um governo trágico, foram os eleitores brasileiros, que o colocaram no poder, ainda que anestesiados pelos efeitos de fakes News e compreendendo pouco ou nem compreendendo os acordos espúrios ocorridos nos bastidores do processo eleitoral. Deste modo, não se pode caracterizá-lo como um governo de regime totalitário, militar, mas, tem-se, hoje, um governo militarizado, policialesco, persecutório e genocida que, aparentemente, não possui a menor noção do tempo trágico que a população está vivendo. Pelo contrário, de acordo com Sandra, é um governo que teima em zombar do sofrimento da população.

Em relação à perspectiva futura, o professor Mauro ressalta que em termos de crescimento, “será igual rabo de cavalo, vai crescer para baixo”. Para ele, a situação do povo brasileiro irá piorar, pois se os governos – seja federal ou estadual – não demonstram nenhuma preocupação com o bem-estar da população nesse momento crítico, muito menos estarão preocupados quando essa fase de pandemia for amenizada.

Corroborando esse mesmo pensamento, a professora Sandra Tosta enfatiza que, “atualmente, o estado brasileiro está caótico e, mesmo assim, diante de tanta tragédia e calamidade, é comum ouvirmos discursos parecidos com aqueles de autoajuda, pois há muita gente achando que o mundo vai ser melhor e que o homem será diferente daqui para frente”, contudo, para ela, não haverá mudanças, imediatamente após esse momento de pandemia, como em um passe de mágica. Em suas palavras: “historicamente, as guerra que temos notícias, todas elas, tinham inimigos e alvos concretos, bem definidos, mas a guerra que presenciamos atualmente é contra um inimigo invisível e ainda desconhecido que atinge o mundo inteiro. Eu não acredito em mudanças de comportamento ou mesmo de cultura que seja feito por decreto e de modo ligeiro. Assim, por mais que seja dramática essa pandemia, por mais que seja reveladora da racionalidade/irracionalidade do nosso projeto civilizatório e do quão é obscena a desigualdade estrutural em nosso país, mesmo se descobrirem uma vacina contra o vírus, não é possível acreditar que apenas isso será indutor de uma mudança radical nos modos de se pensar e compreender o que é o mundo do humano e do não humano, tão entrelaçados sempre, para um agir menos predatório”.

Para não estender a prosa e buscar fechar o texto, é preciso dizer que em tempos de tanta perversidade e insegurança, é necessário tomar como receituário o tratado de Conceição Evaristo e a leveza de Paulo Leminsk. Com esse último aprendemos, para a liberdade e luta, que, infelizmente, “a vida não imita a arte. Imita um programa ruim de televisão”.

* Sandra de Fátima Pereira Tosta é graduada em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (1997). professora visitante do PPG- Educação/UFOP.

** Mauro Passos é graduado em Letras, Filosofia e Teologia. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (1986), Doutor em Educação- História da Educação – Università Pontifícia Salesiana de Roma – UPS (Itália), e pós-doutor em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


Imagem de destaque: Sasha Freemind / Unsplash

 

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