Exilado numa comunidade dos Irmãos Morávios em Leszno, na Polônia, o professor Comenius, que também era pastor da comunidade, viu aumentar sua desdita quando a cidade foi acometida por uma epidemia. Peste bubônica, provavelmente, já que transcorria na Europa Central a Guerra dos Trinta Anos, provocando extensa destruição e fome nos territórios em disputa. Ele não sabia nada sobre a propagação da peste por pulgas e roedores, mas, desde a calamidade da peste negra no século XIV, se acumularam conhecimentos epidemiológicos para mitigar seus efeitos e salvar vidas. Comenius procurou se enfronhar nessa ciência para ajudar seu povo a enfrentar essa peste. Providenciou então que fossem fornecidos alimentos, suprimentos de água limpa e fresca, e medicamentos, com especial atenção para as pessoas que moravam sozinhas. Advertiu que a aglomeração de pessoas conduzia à disseminação da praga e determinou que pousadas e bares ficassem fechados. Instruiu a comunidade para que os mortos fossem apropriadamente enterrados para que a epidemia não se alastrasse.
Todavia, logo ele descobriu que os habitantes da cidade conservavam costumes antigos para lidar com epidemias. Pensavam que, como a doença só se manifesta nos infectados, sua eliminação levaria a erradicação da moléstia. Assim, abandonavam os doentes nos campos e nas florestas, muitas vezes usando a força e até mesmo matando os que se recusavam a sair. Com isso, os mais vitimados eram velhos veneráveis, os enfermos e fracos, descartados sem piedade, não poupando nem mesmo crianças pequenas e inocentes. Esse comportamento não condizia com os princípios dos Irmãos que pregavam um retorno ao cristianismo primitivo como o que imperava entre Jesus e seus apóstolos, valorizando o amor ao próximo e à vida. Essa disparidade de entendimento levaria fatalmente ao conflito, podendo causar o aumento ainda maior do infortúnio de todos, com o grave risco de afetar mais diretamente sua comunidade, devido ao preconceito contra os estrangeiros, geralmente os primeiros suspeitos a ser apontados como a causa do mal.
Convencido de que ajudar os doentes era uma obrigação de todos para com as pessoas infectadas e que não se deveria condená-las prematuramente à morte, como faziam as pessoas que as afastam e as privam de toda ajuda, Comenius decidiu então produzir um livreto em alemão, a língua falada pela maioria dos habitantes da cidade, para condenar a prática tradicional de abandonar os infectados à própria sorte. Depois de expor o significado da peste de acordo com as revelações das Sagradas Escrituras, essencial na época para que seu discurso tivesse alguma credibilidade, Comenius explica tudo o que se deve fazer para controlar a epidemia conforme os ensinamentos fornecidos pela epidemiologia. Por fim, ele discorre sobre a questão que o motivou a escrever seu panfleto, ou seja, qual deve ser nossa atitude em relação às pessoas infectadas, vivas ou mortas.
Como, apesar das diferenças religiosas, todos os habitantes da cidade eram cristãos, ele procura mostrar que eles não agem como tais em sua relação com os doentes, quando lhes negam seus lares confiados a eles por Deus, quando os expulsam da comunidade como animais, quando lhes negam acesso a substâncias curativas e fortalecedoras que os manteriam vivos, quando impedem que cuidadores os protejam das intempéries e os nutram convenientemente, causando indiretamente a morte deles. Também estará se comportando como não-cristão aquele que acha o doente repugnante, fazendo o possível para evitá-lo e a seus cuidadores e os que odeiam as pessoas que acreditam que tenham causado ou que sejam capazes de causar a infecção. Como último argumento, Comenius diz que até os criminosos são mantidos aquecidos, recebem comida e bebida, podem receber visitantes que conversam com eles e podem até fazer algo por eles. Por que então essa crueldade com gente boa, honesta e devota que não fez nada de errado?
Foi essa compreensão ampla de seu magistério, e também de seu ministério pastoral, de que a educação lida com tudo que se refere à vida das pessoas, presente e futura, que fez com que ele fizesse as vezes de “infectologista”, instruísse sua comunidade sobre o tratamento da epidemia e esclarecesse a cidade inteira sobre seu significado. Esta estória, contada em chave um tanto quanto enaltecedora, ocorreu na mesma época em que ele começava a preparar suas obras pedagógicas, onde essa compreensão do trabalho docente é teorizada e desenvolvida. Sua valorização teórica da educação do corpo, a começar dos sentidos, estava certamente em foco quando ele abordou na prática a questão da epidemia. Neste sentido, seu livreto, “Breve tratado do contágio pestilencial”, escrito em 1631, pode ser considerado uma aplicação prática da teoria educacional que ele então elaborava e seria cristalizada anos mais tarde na Didática Magna.
Não sabemos o resultado do seu empreendimento, se funcionou ou não, indeterminação inerente a toda ação educativa e que só pode ser levantada empiricamente.
Entretanto, sabemos que anos depois quando a cidade foi atingida por outra epidemia, foram as pessoas sãs que saíram de suas casas para que os infectados pudessem nelas se abrigar, comportamento fácil de entender caso a ação pretérita de Comenius tenha sido eficiente. O modo como Comenius agiu nesse caso seria classificado posteriormente como “lição de coisas”, “estudo do meio”, “contextualização do conhecimento” ou “pesquisa participante”, da mesma forma que os antigos poderiam reconhecer aí uma forma de maiêutica. Não importa. Aprender é humano e aprender com os outros é uma característica fundamental do gênero humano. De vez em quando, ao invés de abrir os livros adotados nas disciplinas é muito mais instrutivo se abrir para a realidade cotidiana, ainda mais quando ela está anunciando estrepitosamente ameaças a nossa vida.
No ano em que se rememora em todo o mundo os 350 anos da morte de Comenius, a realidade da pandemia nos faz recordar essa sua lição: não basta constatar os fatos, é preciso desvendar a sua genealogia, questionar sua racionalidade e avaliar sua humanidade. Por trás de todo preconceito se esconde um desejo pervertido, gerado pela suspensão temporária do que é humano, do que nos faz rir e chorar, do medo e da coragem, do luto e da alegria. Antes de mais nada, a pandemia nos lembra que, como seres humanos somos todos iguais, todos estamos sujeitos ao vírus. Foi preciso que uma desgraça dessas caísse sobre nós para que nos lembrássemos disso. Como diria Comenius, somos todos filhos de Deus. Todavia, o que a realidade nos expõe diariamente, é que isso não é verdade, essa igualdade é uma quimera e a pandemia, ao mostrar a desigualdade entre os mortos, escancara a disparidade que existe entre os vivos. Não basta minorar os males da pandemia, se não se cuidar ao mesmo tempo das chagas sociais por ela desfraldadas.
Imagem de destaque: Emblema Johann Amos Comenius.