Riscos de violências contra crianças e adolescentes em isolamento social

Sebastião Everton*

É consenso quea educação se constitui como uma importante política para o enfrentamento das violências humanas. É uma das esferas públicas privilegiadas para proteção e para um respaldo do Estado a tais situações, que extrapolam o ambiente escolar; colaborando para identificar, notificar maus-tratos e buscar caminhos para proteger vítimas e apoiar pessoas envolvidas e seus familiares. De modo geral, essas demandas sobre violação de direitos eclodem na rede pública e é importante lembrar que essas situações trazem responsabilidades e desafios aos servidores públicos no âmbito de suas atuações, com normativas e dispositivos para garantia dessa proteção.

Se a escola se configura como lugar de proteção, com as alterações das relações sociais pela pandemia, com os olhares para fora de casa, essa condição se agrava? Sem instituições protetivas a convivência positiva e segura está ameaçada?  Como aprofundar essa discussão?

Como se sabe, Estatuto da Criança do Adolescente prevê a prioridade na proteção e socorro de crianças e adolescentes, isso em quaisquer circunstâncias (art. 4º, par. único). Enfatiza, portanto que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (Art. 5º). Este estatuto orienta que os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos devem ser obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da localidade de moradia da vítima (art. 13º). E, define ainda processos administrativos diante da não comunicação, sendo infração sujeita à multa de três a vinte salários de referência (art. 245).

Todavia, sabemos que muitas vezes os profissionais que trabalham no atendimento desses casos não se sentem seguros ou preparados para lidar com tais situações. Acerca disso, existem projetos em tramitação (ex: PL 4753/2012), que tentam colaborar para que essa lente seja aplicada à formação pedagógica das licenciaturas, garantindo conteúdos programáticos, referentes à identificação de maus-tratos, negligência e de abuso sexual praticados contra crianças e adolescentes. Mas, de maneira geral, ainda é um desafio promover capacitação teórica e metodológica aos profissionais e agentes públicos, além de educar crianças e adolescentes sobre seus direitos, para um desenvolvimento da autoestima e defesa contra as violências. Nos PCN’s, por exemplo, essa pauta aparece nos temas transversais de maneira muito frágil, com orientações genéricas e dispersas; além de estar muito mais relacionadas a questões biológicas do que sobre os comportamentos e interações sociais seguras e protegidas.

Em tempo de isolamento social, alguns fatores de risco colaboram para uma possibilidade maior de violência dentro de casa e nos convidam a pensar o papel da educação neste contexto.  Longe do controle social e de instituições que contribuem para uma estabilidade social, existe um aumento de vulnerabilidade e maior probabilidade de situações de desproteção, que em alguma medida podem passar desapercebida aos nossos olhos. Tudo isso pode ser favorecido por umambiente de tensão, de novas relações, precariedade e ausência de renda, dentre outros, que sãopráticas interativas que vão na contramão de ambiente de proteção. Então, esses espaços acabam ficando maissuscetíveisàvivência dediferentes naturezas de violência (física, psicológica, sexual, etc.), sobretudo no caso das pessoas mais vulneráveis, como crianças e adolescentes.

Sabemos que essa discussão é extensa e sugere muitas reflexões, mas também pode suscitar o engajamento de crianças e adolescentes para minimizar riscos, fortalecer a proteção e medidas de controle em ambientes privados. Por isso, discutir e olhar para essa pauta pode resultar em muitos benefícios:

  • Produção de informação como fator preventivo.
  • Oferecer caminhos para tratar suspeita de um caso de violência;
  • Pensar alternativas quando existe a confirmação deum caso;
  • Pensar estratégias para lidar com as situações de urgência.

À princípio é importante lembrar que existem muitos mitos em torno de violências, sobretudo nasmodalidades que envolvem crianças e adolescentes em ambiente privado. De antemão, é necessário reconhecerque existe uma cultura de posse e de consideração da criança como um “adulto pequeno”, negando suas humanidades, silenciando suas vozes e descaracterizando suas identidades, como uma prática enraizada e naturalizada em nossa cultura. Este é um ponto de partida fundamental.

Desses mitos, também precisamos lembrar que nem sempre o estranho representa um perigo maior para crianças e adolescentes, uma vez que na maioria dos casos de violência, como abuso sexual, tortura ou trabalho infantil, por exemplo, isso geralmente acontece dentro da família ou com pessoas muito próxima a ela (amigo íntimo, ou alguém de convívio afetivo).

Outra dimensão importante é perceber que muitas vezes a criançanão terá uma autodefesa, já que infelizmenteessa aproximação e o vínculo com oadulto é utilizado como condição de opressão. Assim, geralmente são pessoasem que as crianças confiam e estão amorosamente bem envolvidas. Situações como essas, além de perversas, fazem com que crime possa ficar ainda mais encoberto, assustando e mantendo essa criança em sofrimento.

Como se sabe, nem sempre as violências serão visíveis ou estarão apresentadas em lesões corporais. Algumas são sutis e passam pelo uso da palavra, pelo uso do corpo, por produção de fotografias, pelas interações nas redes sociais, por trocas de favores em troca de alguma materialidade e, com frequência, podem não ser reconhecidas como violência. Mas, independentemente do que cada um pensa, essas situações são crimes e deixam marcas e traumas para a vida toda de quem passa per essas experiências.

Quando há envolvimento de familiar essa situação fica ainda mais complexa. E, de forma geral, apesar de um aumento nas denúncias, infelizmente essas práticasnão são comuns. Isso acontece por uma descrença na solução do problema; falta de conhecimento sobre como proceder; falta de credibilidade nas autoridades policiais ou agentes das políticas sociais do estado; pelos constrangimentos; ou, até mesmo, por medo de perder relações e pessoas envolvidas nas situações.

Vale a pena lembrar também que a classe social, a escolaridade e a condição de pobreza, não eximem crianças e adolescentes de ficarem vulneráveis e expostas a essas violências e violações de direitos.  Porém, como se sabe, os que têm uma condição financeira mais favorável, pode produzir estratégias mais sofisticadas para encobrir ou abafar com mais facilidade o ato cometido.

Contudo, acreditar na vítima e no que ela relata e sente é fundamental. Crianças e adolescentes raramente mente e precisam ser levadas à sério, ainda que o que trazem possa não se configurar uma situação criminal. É importante enfatizar que elas nunca são culpadas pelas violências que vivem, pela roupa que estavam, pelo lugar que foram, pela forma como responderam a tal demanda ou por não ter conseguido corresponder a uma expectativa do adulto.

Crianças e adolescentes estão em pleno desenvolvimento e precisam de proteção, o Estado tem responsabilidade nisso, e enquanto adultos, precisamos estar atentose preparados para romper esses ciclos de violência. Ainda que as situações relatas se apresentem como imaginários ou suspeitas, esses casos precisam e devem ser denunciados. Não precisamosesperar a coisa acontecer para tomar alguma providência.

Por quê denunciar?

  • Para evitar que a mesma criança ou adolescente seja novamente vítima;
  • Para evitar que outras crianças sejam vítimas;
  • Para prevenir que crianças e adolescentes repitam na vida adulta a violência sofrida;

Levar o autor a ser responsabilizado e, ao mesmo tempo, receber ajuda profissional para não reincidir no ato;Pelas novas interações, diante das medidas de isolamento, é necessário reincorporar o procedimento de notificação à rotina das atividades de atendimento da Política Educacional; É necessário permanecer em diálogo com os demais pontos da Rede de Proteção à crianças e adolescentes,e buscar formas de diagnosticar e de colaborar para modificação deste quadro social.

Além disso, é fundamental trabalhar a participação de crianças e adolescentes no enfrentamento a essas violências, suscitando novos olhares e possibilidades encobertas pela adulcentralidade (o adulto no centro das decisões). Por fim, sugerimos algumas formas de comunicação(anônimas ou identificadas) para colaborar com esses caminhos.

[Presencial]-Procurar uma pessoa de confiança; comunicar a agentes de segurança, assistência social, educação, saúde; ir à dede do Conselho Tutelar em período de menor trânsito social; procurar uma autoridade policial (guarda municipal, polícia militar, etc.)

[Por Internet]– acessar os sites Safe Net ou Delegacia de Cyber Crimes

[Por Telefone] – Disque 100; Conselhos tutelares (telefones de plantão); Disque 190.

[Em casos de urgência] – Postos de saúde; Hospitais de referência da sua cidade; Delegacias da Polícia Civil.

*Educador Social e Doutorando em Educação na FAE/UFMG


Imagem de destaque: Governo do Estado do Ceará

 

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