Repensar a educação na “Estranha ordem das coisas”

Roberto Rafael Dias da Silva

Dialogar com os professores acerca dos desafios para a composição de currículos escolares na atualidade tem sido uma experiência valiosa em minhas tarefas profissionais. Abrem-se possibilidades de reflexão acadêmica e de crítica política que, regularmente, impulsionam os modos pelos quais elaboro hipóteses de pesquisa e repenso o posicionamento profissional – como professor – que venho estabelecendo no decorrer das últimas décadas. Descobrimos coletivamente que algumas respostas não correspondem mais ao campo de expectativas de nossos colegas e que, com muita força, a produção de novas interrogações apresenta-se como tarefa incontornável. Neste ano, minhas colunas no Pensar ocuparão um papel de diário reflexivo em que compartilharei dúvidas, inquietações e novas leituras com meus leitores.

Este redirecionamento destes breves escritos é decorrente de minhas inquietudes para a produção de uma interpretação abrangente de três conjuntos de questões: (1) Como podemos avançar na compreensão da crise da democracia liberal, da ascensão do neoconservadorismo e das dificuldades da escola se converter em laboratórios da democracia? (2) Como sentir-se desafiado pelos movimentos de inovação educativa, impulsionados pelo advento das tecnologias digitais, mantendo a capacidade de diálogo e reconhecendo as novas desigualdades engendradas neste contexto? (3) Que novas leituras críticas podem nos auxiliar a reenquadrar as pesquisas sobre a escolarização neste início de século, diagnosticando as mudanças nos sistemas produtivos e a emergência de novos saberes e culturas ainda distantes dos cotidianos escolares?

Para começar o ano neste jornal, então, gostaria de compartilhar minha leitura de “A estranha ordem das coisas: as origens biológicas dos sentimentos e da cultura”, escrita pelo neurocientista António Damásio. O cientista português é autor de inúmeras obras que circulam em nosso país, a começar pelo conhecido livro “O erro de Descartes”. Escolhi começar por esta obra porque está em curso no Brasil uma proliferação de políticas e práticas curriculares no Brasil sobre o conceito de “competências socioemocionais”. Tal difusão conceitual vem acompanhada por um conjunto de materiais didáticos e de modelos de avaliação da subjetividade das crianças e adolescentes. Antes de me posicionar mais incisivamente sobre a questão – uma vez que a considero sedutora – senti a necessidade de ler um dos principais pensadores contemporâneos sobre a questão das emoções.

Com Damásio, em “A estranha ordem das coisas”, torna-se possível repensar as dimensões biológicas da cultura e dos sentimentos e, mais que isso, ponderar que “precisamos reconhecer a interação favorável e desfavorável dos sentimentos com o raciocínio se quisermos compreender os conflitos e as contradições da condição humana”. Partindo de estudo detalhado do conceito de “homeostase”, o neurocientista vai reconstruindo nossos antecedentes biológicos e, dessa forma, estabelece relações entre as primeiras formas de vida e o desenvolvimento de nossas culturas. Distanciando-se de uma abordagem que simplifica a cultura a aspectos biológicos, com uma linguagem elegante, Damásio ajuda-nos a pensar que “associar as culturas a sentimento e homeostase reforça suas ligações com a natureza e aprofunda a humanização do processo cultural”.

Nossa mente e nossas culturas, sob essa perspectiva, podem ser explicadas por meio de variáveis ligadas ao afeto, às emoções e aos sentimentos. Muito daquilo que somos é derivado de um conjunto diversificado de experiências; entretanto, “é resultado de um longo processo de educação que interage com a reatividade emocional básica que recebemos como resultado de todos os fatores biológicos em ação durante nosso desenvolvimento”. Em síntese, a maquinaria de nossos afetos é, em parte, educável. No entanto, “nossas experiências mentais não são fotografias instantâneas”. Poderíamos seguir em nossas inquietações, mas nossa intenção não é assumir uma linguagem neurocientífica. A questão que resta, junto a Damásio e seu sofisticado repertório de pesquisa é manter sob interrogação os programas curriculares que priorizam investir e avaliar o componente emocional dos estudantes. Se aprendemos com essa leitura que os sentimentos e a cultura têm origens biológicas comuns, também nos diferenciamos pelas nossas narrativas e pelos significados que atribuímos ao mundo e às experiências mobilizadas.


Imagem de destaque: Aaron Burden / Unsplash

 

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