Rememorar a ditadura

Alexandre Fernandez Vaz

Era um tempo em que eu entrava na adolescência. Andando pelo centro da cidade de Florianópolis, recebi um panfleto distribuído por jovens universitários. Não era situação incomum nos primeiros anos da década de 1980, o regime ditatorial vinha em distensão desde alguns anos e com frequência crescente havia manifestações estudantis. A União Nacional dos Estudantes fora reorganizada e os exilados haviam voltado ao país. O pequeno papel, entregue-me nas imediações do antigo terminal urbano, denunciava a invasão, sem mandato, da casa de um professor. Agindo, portanto, de forma ilegal e clandestina, homens da repressão procuravam livros subversivos na biblioteca. O AI-5 fora revogado, mas quem quer saber de estado de direito quando em lugar de política contam as armas?

O filósofo Adorno escreveu certa vez que é preciso ter tanto medo quanto a realidade merece, e aqueles eram ainda anos de medo. Esse é um dos motivos pelos quais o dia 31 de março, que neste inesquecível 2020 caiu na terça-feira passada, não deve ser esquecido. Em 1964 foi nessa data que o golpe civil-militar foi perpetrado, começando a longa noite que, como podemos observar, ainda não terminou. Hoje ao menos se fala do tema, ainda que nem sempre em ambiente propício para o debate. Quando se menciona a ditadura, sempre há alguém para dizer que já passou, que não é bom remoer o passado e que, a bem da verdade, foi ela necessária para que o Brasil não caísse sob domínio comunista. Sim, soa patético, mas é o que se ouve aqui e acolá. Há quatro décadas a coisa era ainda mais difícil e o medo era constante. Lembro-me do relato de uma amiga, cuja tia esteve banida do país por dez anos. Logo depois da promulgação da Lei da Anistia, em 1979, a exilada estava para chegar e a menina, aos onze, comentou na escola sobre a alegria de afinal conhece-la pessoalmente. Bastou para que a diretora, em pânico, mandasse fechar o portão que dava acesso ao prédio principal e lhe pedisse (“pelo o amor de Deus”) que nada mais dissesse sobre o assunto, já imaginando que forças policiais invadiriam o local. Não era tão fantasioso o cenário, considerando que dois anos antes a PUC-SP havia sido tomada pela Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Na medida em que o regime ditatorial ia saindo do primeiro plano naquele início dos anos 1980, os militares paulatinamente se recolhiam não somente aos quartéis, mas aos bastidores da política, de onde nunca saíram. Eram os anos do lamentável João Batista de Oliveira Figueiredo, o último ditador a ocupar a cadeira de presidente da República. Esperemos, discretamente, que tenha sido o último. Antes diretor do Serviço Nacional de Informações (SNI), o general da Cavalaria do Exército Brasileiro ficou no Planalto até 1985, quando se recusou a passar a faixa presidencial para José Sarney, vice-presidente que assumia no lugar do eleito Tancredo Neves, então acometido por doença que o levaria à morte.

Se o regime de exceção foi sendo aos poucos distendido, houve tempo para que o último mandatário fizesse das suas. Sob descontrolada inflação e outros desastres, e com razoável esforço para tentar fazer dele uma figura tragável, Figueiredo esteve em Florianópolis em novembro de 1979, quando estudantes e populares reunidos em frente ao Palácio Cruz e Souza, então sede do governo, não se comportaram de forma propriamente amável com ele. Tentando falar da sacada do velho edifício, ladeado pelo governador Jorge Bornhausen, o general foi apupado e não pôde terminar seu discurso. Já não havia tanto medo, ou, por outra, ele era superado, como durante toda a ditadura aconteceu com uns quantos brasileiros, pela coragem de lutar pela liberdade. Sem querer abrir mão da caminhada que faria até o balcão de um bar em que a política era o contumaz tema dos convivas, o mandatário desceu disposto a enfrentar a multidão. Houve confronto, resultando, na madrugada do dia seguinte, na prisão de quatro estudantes que logo foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Uma das pessoas presas me disse do quanto ficou impressionada com a presença de colegas de curso universitário circulando pela delegacia durante seu depoimento. Eram informantes.

Por falar em lei e em segurança nacional, foi também naquela época que Figueiredo, amparado pelo então vigente Estatuto do Estrangeiro, expulsou do país o padre católico Vito Miracapillo, italiano que atuava no interior de Pernambuco. Ele se recusara a rezar uma missa em homenagem à Independência do Brasil, em sete de setembro de 1980. Em carta, afirmara que não podia celebrar a data porque não era independente um povo obrigado a pedir esmolas e sem direitos. Foi denunciado por um deputado estadual que o considerou subversivo. Era Severino Cavalcanti, o mesmo que presidiu a Câmara Federal por alguns meses em 2005, para logo renunciar ao mandato, acossado por denúncias de corrupção. Ficou para a história o discurso do também deputado Fernando Gabeira, segundo o qual a presença do colega como presidente da casa seria “um desastre para o Brasil, um desastre para a imagem do Brasil!”, para logo depois vaticinar: “Ou Vossa Excelência fica calado, ou começa a ficar calado ou vamos iniciar um movimento para derrubá-lo”. Padre Vito recebeu visto de turista de Itamar Franco e permissão permanente para estar no Brasil de Dilma Rousseff. Severino era, com Jair Bolsonaro e mais um punhado de deputados, do grupo conhecido como baixo-clero da Câmara.

Na última terça, o atual presidente da República, em sua tradicional aparição matinal próximo ao portão do Palácio da Alvorada, falou que aquele era o “grande dia da liberdade”. O 31 de março deveria ser para nós, ao contrário, o que é o 24 de março na Argentina, data do golpe militar de 1976: o dia da memória. Recordar, não recalcar, não repetir.


Imagem de destaque: Ato público pela Anistia. Rio de Janeiro, 1979. Arquivo Nacional, Serviço Nacional de Informações

 

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