Quem tem medo da linguagem neutra e inclusiva?

José Heleno Ferreira

O uso da linguagem inclusiva, substituindo o masculino por expressões que demarcam a coletividade – como “juventude”, ao invés de “os jovens; “povos indígenas”, ao invés de “os índios”; “poder judiciário”, ao invés de “os juízes”, entre outros – e o uso do masculino e feminino, como em “eles e elas” tem se fortalecido entre aqueles e aquelas que defendem a construção de uma sociedade igualitária e o direito de todos e todas aos espaços e aos debates públicos. Trata-se de um movimento que remonta aos anos 1960, em países europeus, e ganha força em todo o mundo a partir dos anos 1980 e 1990. Na última década do século XX, por exemplo, o uso do arroba (@) foi uma estratégia utilizada para a inclusão de homens e mulheres num mesmo vocábulo: companheir@s, amig@s…

Mas para além do uso de substantivos e adjetivos comuns aos dois gêneros e expressões que demarcam uma coletividade substituindo termos masculinos, as comunidades formadas por pessoas não binárias reivindicam outras estratégias para que se sintam incluídas nos espaços públicos, nos discursos oficiais, enfim, na comunicação. E é partir deste movimento que surgem alternativas que propõem o uso de uma linguagem neutra: amigues ou amigxs, por exemplo, e mesmo novos pronomes como “elu”, “delu”, “ile” e “dile”.

O uso da linguagem neutra e inclusiva tem sido objeto do ataque de grupos conservadores, fascistas ou neofascistas e fundamentalistas religiosos. Atualmente, no Brasil, de acordo com a Agência Diadorim, há 34 projetos de lei tramitando nas assembleias legislativas de 19 estados brasileiros, além da Câmara Distrital, no Distrito Federal. Propõem a proibição do uso da linguagem neutra e inclusiva nas escolas, no serviço público e, em alguns casos, nas manifestações culturais.

Os dados apurados pela Agência Diadorim mostram que a autoria desses projetos é, majoritariamente, de homens (88,57% do total). Além disso, 13 dos 34 projetos em tramitação foram apresentados por deputados eleitos pelo PSL e oito por deputados militares, além de dois líderes religiosos. A defesa que se faz de tais projetos, invariavelmente, utiliza-se do discurso em nome da família e da vida, em nome da não sexualização das crianças. Sabe-se, no entanto, que tal discurso, ao invés de promover a vida, tem promovido a morte: os crimes de ódio contra negras e negros, contra a população indígena, contra as mulheres, contra a população LGBTQIA+ continuam crescendo e o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo, além dos altos índices de feminicídio, do genocídio da juventude pobre e preta e os constantes ataques à população indígena.

Outro argumento utilizado nas justificativas dos projetos de lei é a defesa de que a norma culta da língua precisa ser ensinada nas escolas, seguindo o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), conforme a Academia Brasileira de Letras (ABL). Argumento este insustentável. Sabemos, todes nós, que a língua está em constante transformação, pois que expressa as diversas formas de se manifestar que vão sendo construídas e reconstruídas ao longo do tempo. A própria ABL, conforme afirma o filólogo Evanildo Bechara, evidencia a fragilidade desta defesa, uma vez que a última revisão do VOLP incorporou mil cento e sessenta novos vocábulos, entre eles, home office, necropolítica, feminicídio. Além disso, os estudantes têm, sim, o direito de aprender a norma culta da Língua Portuguesa, mas têm também o direito de conhecer e debater os processos de transformação da língua – um processo vibrante e ativo, capaz de expressar as mudanças culturais e comportamentais na fala e na escrita de um povo.

Isto posto, retoma-se a pergunta título deste texto: o que temem o fascismo, o conservadorismo moral e o fundamentalismo religioso nesta cruzada contra a linguagem neutra e inclusiva?

Na verdade, o que está em questão é a defesa de um projeto de sociedade que não aceita a diversidade, que não admite a liberdade de expressão e não reconhece as diferentes formas de lidar com o corpo, com a sexualidade que fogem da imposição heteronormativa ainda hegemônica na contemporaneidade. E nesta cruzada contribuem para o fortalecimento dos preconceitos e discriminações que tantas vidas têm custado. Trata-se de um discurso vazio, que defende a família, mas não reconhece os diferentes arranjos familiares no mundo atual, que defende as crianças, mas que não se contrapõe ao uso de imagens de crianças com fuzis no colo do presidente da nação. Um discurso que, em última instância, fere aquilo que estabelece a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo segundo: todo ser humano tem direito à liberdade, “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional, social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.

De fato, temem a liberdade. Temem o amor. Mas, como nos lembra Carlos Drummond de Andrade no poema Congresso Internacional do Medo, “o medo esteriliza os abraços”. Não permitiremos que o medo nos esterilize quanto à capacidade de amar. Não permitiremos que o medo nos paralise. Continuaremos lutando. Não nos calarão!


Imagem de destaque: Gerd Altmann

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