Professorandes, professoremos – assim contou Ayó

Ivane Perotti

Chegou ao Brasil no ventre da mãe. Embarcada na violência. Tempo pouco para dar luz à barriga. Não conheceu o filho. Vivo por obra das Àyabás. Criado nas sombras. E sobras. Às escondidas. Mirrado. Remelento. Quem se apiedava do nascimento, dava um dedo. Um de leite. Outro de farinha desviada da grande cozinha. Não chorava. Engolia de um só golpe. Vingou por esforço de misericórdias. Alheias. Furtivas. Tornou-se ferreiro na casa dos senhores. Nato. Silencioso. Letrou-se nas lições da vida. Da vinda. Dos negros ao Brasil. Nas dores da servidão. Olhos de fogo. Braços de céu. Montou guerra.

— Zacarias… talvez pudéssemos reescrever essa última …

— Não, fessora. Essa contação é de verdade real. E eu sei que ele montou mesmo.

— Entendi. Mas a questão da verdade é…

— Não posso provar, né? Mas eu posso contá.

— Certo! Eu só… quero que entenda que, por real…

— Real da realidade, né? Só tô criando um pouquinho. Prá tê graça.

— Estilo!

— Graça mesmo, profe! pro povo aqui gostá!

Zacaria respirava a reação da turma. Esperto. Criativo. Dedicado.

— Preto!

— Não é preto que se fala, Zaca, a gente é tudo do negro.

— A minha cor, ó! – gestos largos riscavam os braços altos de Zacaria.

— Mas é sobre raça… a gente… os ancestrais, sabe?

Avizinhou-se interessante e movimentada discussão. As palavras fluíam como chispas de fogueira em noite de vagalumes. Disputando o fundo da noite. Desenhando em salvas a dança etérea. Quente. Literatura emborcando lenhas. Achas. Cavacas férteis. 

— Ele não “montou guerra”, mas deveria ter montado – a voz ganhou o espaço da surpresa. Ocupou o silêncio construído na rabeira da quebra.

— Poderia explicar, Tobias? Por gentileza?

— E precisa? Se o ta-ta…tataravô do Zaca tivesse feito guerra, a gente não era morto assim… caçado como bicho do mal.

— Mas, guerras não são a solução, Tobias. Nunca foram!

— Quem disse? 

Aos argumentos da professora de história, Tobias acrescentava estatísticas. Casos. Causos avolumaram-se. Havia mais um e mais um a ser acrescido aos relatos de violência e preconceito que alguém vivenciara, ou conhecia alguém que…

— Sora... posso continuá a lê a minha história?

— Sim! Por favor, Zacaria – o suspiro encontrou em tréguas a docente. Professorar o presente derivava de inconsistências. Insurgências. Mais estas do que aquelas. Necessárias. Urgentes. 

Ayó batia o ferro com mãos de lava. O menino minguado tomara porte de gigante. Aprendeu sobre as tradições com as escravas antigas. Também com elas, soube da terra-mãe, dos parentes, do povo que reinava lá onde ficara seu pai. Aprendeu para voltar. Alimentava-se dos aprendizados. Todos. Da comida. Da religião. Das crenças disfarçadas em rituais de parecença. Aprendia e guardava. Guardava naquele “ori” de tantas ideias. Sonhos de retorno. De liberdade para o seu povo. Um dia, Ayó foi chamado para fazer uma nova peça de ferro para um navio recém-chegado. Levaram Ayó até o porto. Escondeu o susto diante daquela engenharia. E em pouco tempo, entendeu como ela funcionava. Melhor ferreiro das redondezas, foi sendo chamado, uma vez atrás da outra. Esmerava-se no talho. Fazia reluzir as peças de ferro. Polia ideias de liberdade. E sem que ninguém notasse, Ayó aprendeu todas as linguagens. De tanto ouvir, entendeu. De tanto fazer, fez melhor. À noite, na senzala, repassava para os irmãos. Ensinava silêncios. Jeitos daquele povo que continuava a escravizar o seu povo. Aprendeu a costurar solidões. Dizia rezas. Dizia palavras de consolo. Dizia sonhos. Muitos duvidavam que tivesse nascido em cativeiro. O ferreiro conhecia do ontem e do hoje. E mostrava um futuro a ser feito. Com força. Conhecimento. Persistência. 

Só uma vez o ferreiro foi para o tronco. Apanhou no lugar de um antigo. Muito antigo. Um dos primeiros a chegar. Açoitado pelo feitor, não resistiria. Ayó segurou a mão da morte. Tomou o rebenque de couro e, quase a revelar a sua força, cedeu. Castigado por mais de quatro dias, recolheu-se novamente à suposta mansidão. Não esqueceria o som do couro trançado em pontas rasgando a pele. Lambendo as suas costas. Dividindo o alto dos braços. A carne curou. Seu coração cresceu em brasas. Tendo aprendido as datas de atracamento dos navios…

— Psora, o que é atracamento? O Zacaria engoliu o dicionário, né?

Por detrás das folhas do caderno, Zacaria sorria pelo que pensou ser um navio. Ele mesmo explicou do que tratava o verbo. E continuou:

… sabia de antemão quando chegariam abarrotados de escravos. Quando buscavam reparos. Quando buscavam suprimentos antes de partir outra vez. E aí, deu início à guerra.

— Profe! O Zaca tá inventano demais. Não existiu guerra dos escravo aqui no Brasil! 

— à ponderação da colega, adiantou-se o próprio contador, dizendo que a as coisas da história não são contadas como aconteceram. Mas sim, como querem que a gente acredite que aconteceu. Sem dizer mais, prosseguiu: 

(continua)


Imagem de destaque: alyssasieb

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