Ana Paula Sampaio Caldeira*
“Não se pode influir eficazmente sobre o espírito da criança e captar-lhe a atenção, sem lhe falar ao sentimento (…). A vida é ação, é movimento, é drama. Não devíamos apresentar o Brasil aos nossos pequenos leitores mostrando-lhes aspectos imotos, apagados, mortos”. Foi com essas palavras que Olavo Bilac e Manoel Bomfim, dois importantes intelectuais brasileiros do início do século XX, explicaram os objetivos de uma das produções mais famosas desta parceria: o livrinho Através do Brasil. Publicado em 1910, o livro é um bom exemplo do que poderíamos chamar de literatura cívico-patriótica, orientada a formar os pequenos cidadãos republicanos. Ali se contava a aventura vivida por dois irmãos, Carlos e Alfredo, que, ao saberem que o pai estava doente, fugiram do internato em que estudavam e viajaram por todo Brasil. Na viagem, puderam não só conhecer a geografia e a história de diversas regiões, como se depararam com diversos “tipos” brasileiros.
O livro foi um verdadeiro sucesso editorial. Quase 50 anos depois de sua publicação, alcançouo número de 43 edições, o que significa dizer que as histórias contadas ali souberam captar as atenções de muitos jovens. As viagens de Carlos e Alfredo eram acompanhadas com interesse pelos leitores, que, enquanto aprendiam sobre o Brasil, se emocionavam ese identificavam com seus protagonistas, também crianças. Em 48 anos,43 edições: um ótimo desempenho para dois autores que escreviam em um país cuja população tinha um acesso muito limitado aos livros e à instituição escolar.
Entretanto, vale lembrar que Através do Brasil não foi o único exemplo do sucesso comercial desse tipo de literatura. Em comemoração aos 400 anos da descoberta do Brasil, o conde de Afonso Celso publicou seu famoso Porque me ufano de meu país, obra que foi editada por muito tempo, alcançando 12 edições em 1943. Dedicado a seus filhos, o autor inicia o livro com uma nota sucinta, mas que diz muito sobre o trabalho realizado por intelectuais como Bilac, Bomfim, o próprio Afonso Celso e tantos outros que não caberiam aqui: tratava-se ali, afirma ele, de um “ligeiro trabalho de vulgarização”. Esta simples afirmação diz muito, pois aponta, por um lado, para o expressivo lugar que seu autor ocupava no ambiente letrado de sua época e, por outro, para as exigências que envolviam suas atividades. Isso porque, quando falamos de autores como os que citamos aqui, estamos nos referindo a intelectuais que ocupavam posições expressivas nas instituições e redes pelas quais circulavam. Mas suas funções envolviam não apenas escrever para seus pares, como também exercer um papel educativo, o que significa dizer que algumas de suas obras se dirigiam a um público amplo, especialmente formado por jovens e crianças.
Neste sentido, discutir questões pedagógicas, assumir cargos ligados à instrução pública ou atuar escrevendo livros didáticos ou produções literárias voltadas para a formação cívica da infância e da juventude não era, para esses homens, uma atividade secundária. Pelo contrário: eles circulavam entre a produção de uma história científica e ensinável, sem necessariamente hierarquizar essas suas dimensões e, menos ainda, valorar como inferior o trabalho nesta última frente. Afinal de contas, o conhecimento da língua, da geografia e da história pátrias tinha, reconhecidamente, um importante valor educativo: sem esses saberes não era possível formar os futuros cidadãos republicanos. E esta tarefa nada tinha de fácil! Dirigir-se ao público infanto-juvenil, ou mesmo não especialista, exigia a habilidade de saber falar à inteligência, mas também ao coração, afinal de contas o amor à pátria não nascia exclusivamente da racionalidade. Antes, envolvia a interiorização de ideais de comunidade e reconhecimento que exigiam uma prática pedagógica dirigida aos sentimentos e às emoções.
Nos tempos de hoje, em que a questão da circulação científica é tão debatida nos meios acadêmicos e universitários, conhecermos os modelos de atuação desses intelectuais do passado talvez nos ajude a pensar que essa discussão não é tão nova quanto se poderia pensar. Entretanto, para aqueles homens, o ensino e a divulgação do conhecimento ocupavamum lugarna sua formação como intelectuais quehoje já não existe da mesma maneira. Isto por motivos diversos e que ainda precisam ser mais bem compreendidos. Talvez seja justamente a diferença que torne aquelas experiências tão interessantes aos olhos dos historiadores de hoje.
GOMES, Angela de Castro. República, educação e história pátria no Brasil e em Portugal. In: A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentvm, 2009. p. 85-120.
CATROGA, Fernando. A educação moral, cívica e patriótica. In: O Republicanismo em Portugal.Alfragide: Casa das Letras, 2010. p. 257-77.
BILAC, Olavo e BOMFIM, Manoel. Através do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CELSO, Afonso. Porque me Ufano de Meu País. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2001.
* Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG; doutora em História pelo CPDOC/ FGV.
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