No começo do mês foi possível ler na prestigiada página 2 do jornal Folha de São Paulo, um texto de Luciano Huck em que ele renuncia, em cuidadosos parágrafos, à candidatura a presidente da República nas eleições gerais de 2018. A postulação do apresentador de programas de auditório, discutida na imprensa e em círculos da sociedade civil como alternativa à crise de representação da política tradicional, naufragou antes de se concretizar porque questões pessoais e familiares haveriam tido peso maior na balança decisória.
Huck vinha se apresentando como alguém que pensa no país e quer seu bem, com capacidade de diálogo com diferentes setores e de agregação de distintas forças da sociedade. Em artigo há cerca de dois meses, no mesmo espaço daquele de sua renúncia, escreveu: “Tenho pensado, lido, refletido e ouvido muita gente sobre os melhores caminhos para tirar o Brasil desta triste situação em que nos encontramos. Os caminhos divergem, mas nunca vi tanta gente genuinamente empenhada em contribuir e se envolver.”
Setores das elites têm se organizado em movimentos políticos que, frequentemente brandindo a bandeira da educação e sua eficácia, oscilam em tornar-se partidos, associar-se a eles, negá-los. Não é incomum a evocação à honestidade, aos homens de bem, aos patriotas, aos que tem ideias novas e viáveis para o país, mesmo que com posições políticas díspares. “Ética e altruísmo não têm cor nas suas bandeiras”, escreveu Huck. Requenta-se o discurso do fim das grandes visões de mundo, mas se esquece que democracia não rima, definitivamente, com neoliberalismo. Associado a mais de um dos movimentos, o mestre de cerimônias das tardes de sábado, disse que seguirá tomando parte da política, mas sem pretender mandato.
Para mais de um analista, Huck não conseguiu se viabilizar como candidato por causa das relações de força que estruturam os partidos políticos, além de lhe faltar apoio mais decisivo dos movimentos. Não é sempre tão fácil quanto parece um outsider decolar na política. Quem conhece o jogo no Congresso e em seus congêneres estaduais e locais, no interior dos partidos e entre políticos e empresários, sabe o pau-de-sebo que é tentar viabilizar-se como candidato. Nada menos que Sílvio Santos teve seu intento fracassado em 1989. A coisa é para profissionais. Mesmo João Doria e Jair Bolsonaro não são propriamente noviços, como se escuta aqui e ali. O primeiro, até as eleições para prefeito de São Paulo, pouco atuava partidariamente, mas esteve sempre mais que presente na articulação com grandes empresários. O segundo, por sua vez, habita a Câmara Federal já se vão vários mandatos, apesar de sua atuação medíocre como deputado, até há pouco limitada quase que exclusivamente à pauta do salário dos militares.
Huck também era uma espécie de outsider, ao menos se apresentava como tal, mas talvez isso não seja de todo verdade. Confesso que quando a ideia de sua candidatura se colocou como possibilidade, não deixei de me surpreender. Por um lado, sinto-me ingênuo com tal surpresa, por outro, celebro o fato de não deixar de me espantar, o que talvez seja um sinal de que ainda me resta alguma saúde mental. Da forma como está estruturada, a política demanda que seus participantes sejam atores, que atuem para a câmera e, mais recentemente, que se coloquem massivamente pela vida virtual. Como o efeito sem causa é a norma, ou seja, é preciso antes de tudo impressionar, um especialista em auditórios teria lá suas vantagens na disputa eleitoral.
A política supõe uma economia dos afetos, mas quando os argumentos não têm valor, só aqueles valem. Medo, ressentimento e ódio, passam a valer muito. Não penso que Huck necessariamente incitaria tais afetos, mas está claro que sua candidatura, vinda do lugar que vem, captaria esses impulsos que, no mais, compõem nosso cotidiano. A perversa união entre indústria cultural e dominação política, duas faces da mesma moeda, como bem demonstraram Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, encontra nos candidatos-animadores seu desiderato mais concreto. Ambas promovem e se realimentam pela repressão com aparência de liberdade, pela supressão das capacidades intelectivas, pela submissão dos sentidos ao puro esteticismo ou simplesmente pela promoção do baixo calão. Podem ser pastores, radialistas, mas também especialistas em promover sentimentalismo e atiçar as fantasias mais óbvias de machos brasileiros.
Em 2007, o ex-candidato, que já se colocava politicamente de maneira semelhante à postura atual, escreveu que pensava em chamar o “comandante Nascimento” para cuidar da segurança pública. Ao refletir sobre o momento pelo qual o país passava, citou João Doria, líder do movimento “Cansei”. Huck tivera seu relógio roubado por dois motoqueiros na região dos Jardins, em São Paulo. Em resposta a ele, o escritor Ferréz ficcionalizou o episódio, em narrativa dessas que fazem a gente prender a respiração. Supondo o ponto de vista do “correria”, escreveu que ele “Era da seguinte opinião: nunca iria num programa de auditório se humilhar perante milhões de brasileiros, se equilibrando numa tábua pra ganhar o suficiente pra cobrir as dívidas, isso nunca faria, um homem de verdade não pode ser medido por isso.” Para logo então arrematar: “No final das contas, todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio. (…) Não vejo motivo pra reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes.”
São fortes as palavras de Ferréz, cuja escrita mimetiza a sintaxe e o espírito da periferia de São Paulo. Sim, é dessa radicalidade expressiva que precisamos, mesmo que sua letra nos cause arrepio e mal-estar. (Quanto ao ano que finda, deixará alguma saudade. Mas, que o tempo siga seu destino).
Sul da Ilha de Santa Catarina, dezembro de 2017.
Alexandre Fernandez Vaz