“Professor, minha irmã faz Astronomia!”

Cleiton Donizete Corrêa Tereza 

Passam os dias, passam as semanas, passam os meses… e continuamos com o penoso ensino remoto diante da pandemia de COVID-19. Nas redes de educação do estado de Minas Gerais e do município de Poços de Caldas, os dirigentes parecem se importar mais em fazer propagandas e discursos arrefecedores, do que implantar medidas que verdadeiramente coloquem a educação como prioridade, buscando vias para a vacinação ampla, suporte às famílias necessitadas e preparação estrutural das escolas e das equipes para o retorno presencial. 

Uma parte significativa dos matriculados segue não conseguindo estudar, os professores continuam sobrecarregados e o setor da educação como mercadoria pressiona para um retorno presencial, negligenciando os riscos. Para que a situação, já catastrófica, não piore, levando ao aumento da lotação nos hospitais e perdas de vidas humanas, seguimos com o ensino remoto, mesmo que falho, precário e altamente excludente. Dito isso, compartilho uma experiência muito significativa. 

Em uma de minhas últimas aulas síncronas, dialogando sobre a origem da vida e evolução dos hominídeos, uma situação interessante se desdobrou. Pontuação necessária: tenho insistido que as aulas síncronas na educação básica são tentativas necessárias de envolvimento, ao menos para uma parte dos estudantes e seus familiares, melhorando o aprendizado e sinalizando para a sociedade nosso compromisso permanente. Retomando, após minha explanação sobre nossas origens, com base nas explicações científicas mais aceitas, reservei os minutos finais da aula para tirar as dúvidas. Que ilusão pensar que alguns minutos seriam suficientes! Quando parei minha apresentação na plataforma de chamada de vídeo e retomei a imagem da turma, para ver os estudantes dos 6º anos, um monte de mãozinhas estavam levantadas. Eles estavam interessados, queriam falar, tinham várias dúvidas e se mostravam um tanto aflitos com o fato do Sol, como estrela que é, um dia deixar de existir. Não consegui ouvir todos por causa do tempo diminuto. Mas avisei que na próxima semana retomaria a conversa, alterando meu planejamento. E, nesse finalzinho de aula, uma aluna disse: “Professor, minha irmã estuda isso, acho que é Astronomia. Ela mora em Sergipe e quando vem pra cá só fica em casa estudando.” Na hora minha curiosidade aguçou! “Que legal! Ela é uma cientista! Você pode passar o contato da sua irmã? Quem sabe ela participe com a gente na próxima aula.” – eu disse.

A irmã da aluna é Nayara Isabelle, tem vinte e três anos, nasceu e cresceu em Poços de Caldas, estudou sempre na rede pública e na adolescência foi cultivando cada vez mais sua paixão pelos estudos, especialmente por mitologia grega, matemática e astronomia. Trabalhou como menor aprendiz e foi juntando dinheiro. Concluindo o ensino médio prestou o ENEM, almejando o sonho de ser astrônoma. Por questões de custo e qualidade de vida optou por Aracaju, ao invés de Rio de Janeiro e São Paulo. Foi aprovada por meio do SISU e se mandou para o Nordeste. Ela está caminhando para a conclusão do curso, que passou a se chamar Astrofísica. 

Nayara e eu fizemos uma breve reunião, após a irmã ter me passado seu contato, e articulamos a participação dela em nossa aula síncrona semanal. Tanta coisa para conversar como os meninos e meninas: mulheres na ciência; jovens fazendo ciência; estudante de escola pública na universidade pública; conexões possíveis entre História e Astrofísica; narrativas mitológicas; corpos celestes; cálculos e projeções. Nos despedimos entusiasmados para a realização de nosso encontro que aconteceria em breve.

Às 7h30 da manhã de uma quinta-feira, numa semana fria no sul de Minas, quase todos nós cheios de blusas e toucas, Nayara apareceu na tela radiante e de camiseta! Ah… o Nordeste! Os estudantes estavam um tanto ansiosos. Minutos antes do horário marcado alguns já perguntavam: “Professor, cadê o link?”. Um outro estudante interrogou logo que entrou na sala online: “Professor, a moça que vai falar com a gente já está aqui?”. A irmã de Nayara vibrava com a presença da primogênita. A expectativa era grande! 

Apresentei brevemente nossa convidada e a aula teve início. Nayara, mesmo confessando depois um certo nervosismo, conduziu muito bem sua apresentação, compartilhando seu interesse pela ciência e pela leitura desde a adolescência, sua decisão em estudar os astros aos doze anos, sua labuta no ensino médio, conciliando trabalho e estudo para realizar seu sonho que, diferente de muitos na mesma idade, não era o de comprar uma moto, um carro, fazer um cruzeiro com a galera, etc. O sonho era poder se dedicar à ciência. Ela explicou brevemente o processo de fazer o ENEM, se inscrever pelo SISU e começar os estudos na Universidade Federal de Sergipe. Em seguida comentou sobre as questões que tanto despertavam o interesse dos alunos: o céu, as constelações, a mitologia (sem esquecer dos saberes indígenas), o Sol, a Terra e os limites desse nosso privilégio que é a vida. Os slides, preparados com cuidado, tinham muitas cores e movimentos, que ajudaram a reter ainda mais a atenção dos pequenos. Ao terminar sua apresentação, Nayara teve que encarar uma sequência de perguntas. Uma delas: “Mas se a Terra orbita ao redor do Sol, e o sol vai explodir, não teria como a terra fugir da órbita do Sol e escapar?”. A animada conversação seguiu com a participação de vários estudantes, extrapolando o horário previsto para o encerramento.

Com tanta “cloroquina” por aí, isto é, com tantas prescrições equivocadas para a educação, com tantos ataques à ciência, com tanta violência para com as mulheres, com tantos motivos para ficar cada vez mais cabisbaixo diante dos sucessivos golpes contra as escolas e a juventude, a experiência desses dias foi revigorante. A atenção e a abertura ao que dizem os estudantes, a consideração para com suas curiosidades, a valorização do conhecimento científico em diálogo com outros elementos das culturas historicamente produzidas, e a inspiração de uma jovem da classe trabalhadora, que rompeu barreiras, apoiada pela família e suportada por programas de acesso à universidade pública, consistem em apontamentos irrefutáveis de quais investimentos precisamos fazer para a melhoria da educação pública brasileira, e também para as possibilidades de emancipação por meio da garantia de direitos fundamentais.

 

Para saber mais:

Astrominas 2021 (Astronomia para meninas) – projeto com inscrições abertas. Disponível em:<https://sites.usp.br/astrominas/astrominas-2021/>. Acesso em 31 de maio de 2021.

AstrofísicaUFS (página no Instagram da Universidade Federal de Sergipe). Disponível em:<@astrofísicaufs>. Acesso em 31 de maio de 2021.


Imagem de destaque: Ilustração e colagem de Sophia de Paula Corrêa Tereza. 

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