O coletor de textos: a importância da palavra que cria realidades

 Luciano Andrade

Como bem me ensinou o poeta mato-grossense Manoel de Barros, “dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes” porque “sou um apanhador de desperdícios”. Graças a ele, permito que coisas simples do cotidiano façam uma verdadeira revolução em mim. E sou feliz por isso. A descoberta maior, já adulto, foi entender que esse intenso chamado de atenção era feito de texto.

Somos embalados em um nome ao nascer. Uma palavra cheia de significado, de história, que irá nos identificar para sempre. Acolhidos pelos nossos cuidadores, ainda bebês, aprendemos os diversos códigos de sobrevivência e todos eles vêm em forma de linguagem, desde o pedido de carinho até o grito de socorro por uma dor ou sofrimento. O caminhar da vida é composto por essa dinâmica de aprendizagem para, só depois de muito escorregão no dia a dia, compreender essa coisa óbvia de que somos parte de um grande texto. 

O que entra nas páginas da nossa vida é aquilo para o qual decidimos olhar com encantamento, de forma mais atenta e significativa. Por isso, quero contar a história de uma pequena cidade francesa, na região da Alsácia, chamada Serralbe, e que mexeu comigo. Construída no século X, o lugarejo viveu, nas últimas décadas, a possibilidade de extinção de um dos pássaros que a simbolizava: a cegonha. Cientes da força simbólica – símbolos são textos! – que aquela ave traz, os moradores e o poder público resolveram promover uma campanha de resgate e cuidado com esses animais de cerca de 1 metro de altura e que chegam a pesar mais de 3 quilos para uma ressocialização. O resultado é uma cidade novamente habitada pela beleza e pelo barulho vindo do bater dos bicos, conhecido como gloterar

Para um lugar que nasceu nos anos 900 depois de Cristo, é de se esperar que ele conheça muito mais que nós, brasileiros, o mistério do tempo e como uma história pode ser contada. Ou seja, é uma cidade que também dá valor ao desimportante aos olhos comuns, mas que constrói, diariamente, a poesia da vida. Dessa perspectiva, a prefeitura resolveu colocar uma câmera ligada 24 horas sobre um ninho de cegonhas, localizado bem no centro da cidade. Todos puderam acompanhar a relação monogâmica de um casal rapidamente batizado de Mélodie e Maurice.

O assunto – ou o texto! – começou a circular e, de repente, o casal virou tema de conversa nas famílias, na mídia, nas escolas e nas ruas. A “desimportância” das cegonhas, aves símbolo da fertilidade e da bonança da vida, trouxe alento para um tempo de tantas angústias e espalhou, com o vento e o glotero, mais poesia pelo lugar.  

A natureza, ciente do seu papel reprodutivo, não tardou em presentear o casal com cinco ovos que, no frio de Serralbe, foram devidamente agasalhados por uma mãe e um pai preocupados com o futuro que surgiria dali. Cada nascimento foi comemorado pelos mais de 4 mil seguidores da página no Facebook e chegaram a ganhar até nomes, como Thomas ou Petitou e Chanel. Os outros três ainda não foram nomeados devido à semelhança absurda que as aves têm quando pequenas. 

Volto ao Manoel de Barros para lembrar que “uso a palavra para compor meus silêncios”, pois “não gosto das palavras fatigadas de informar”. Afinal, quem não está com motivos para se dizer cansado de uma realidade cada vez mais bruta? As cegonhas de Serralbe ensinam a quebrar palavras duras ou até rudes para que consigamos nos lapidar e, só por isso, estar mais atento aos textos que estão ao nosso redor. 

As letras, as palavras, as frases, os textos gestam realidades. Permita-se engravidar de leitura, não só de livros, mas daquilo que nos veste diariamente. Talvez, quando se questionar sobre a possibilidade de um mundo melhor, entenda que estamos submersos a uma quantidade impressionante de linguagem em que, de acordo com nossos parágrafos, nossas exclamações, interrogações e, até mesmo, pontos finais, protagonizamos o cenário do palco de nossa vida. 

 

Para saber mais:

1- Acesse a câmera aqui
2- Visite o grupo Les cigognes de Sarralbe en Moselle por aqui. 
3- Alimente-se dos considerados 10 melhores poemas de Manoel de Barros aqui.  


Imagem de destaque:  Lubos Houska

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *