Posturadas(os) – quando a costura abunda o verbo

Ivane Laurete Perotti

Afinação não falta aos terceiranistas de minha escola. Pública, por natureza do dever e do direito, insta à produção. Especialmente, linguística. Na ordem dos fatos, convidei estudantes para, a várias mãos, escreverem este alinhado. Alinhesado, talvez. A oralidade beija sinestesias.

Noite de chuvas. Águas de novembro tomam a abóbada – a cúpula de São Pedro, vexada por sentimentos contraditórios, descabela-se. Pontinha do frio sulista. Pontinha só! Depois do S.O.S.  por alguns conterrâneos, até o Minuano acachapou-se. Coisas de foro íntimo! Enfim, a chuva tocou a natureza política da escola. Os terceiranistas sentiram na língua urgências e contrações. Caso para audiência prática:

_ Ô, pró! Dá pra gente falá mal do português?

_ Conheço?

Carga elétrica. A sanfona pulmonar expulsou risos dentados. A chuva lambeu curiosidades. Sala cheia. Adolescente maduros. Farra pedagógica. Conversas abundantes. Argumentos à ponte:

_ Psô! É muito difícil!

_ Hummm?

_ O português…

Congestão semântica. Interpretações vergando o lombo! Multívocos sentidos em contrato de comunicação.

_ Mano! Calé!

_ Rejeitô, mané!

_ Ah! Larga deu… tô falanu da língua, miguelado!

Risadas são peneiras d’alma. N’alma. A depender do contexto, vara o bucho. Longe das buxáceas comportadas, risadas são bálsamo, desde que descansem o martelo: Maldo! Calvo! Caldo! Nenhum dos três na primitividade. Ressignificados feito pneu de pólvora: Pova! Tonicidade aberta na segunda sílaba, sem ligação com estopim. De fato, linguísticos, todos.

_ Intão, psô! A língua…

_ … Portuguesa do Brasil…

_ Essa!

_ Nossa…

_ Tô ligadu, prof! A nossa…

_ Tomé, mano! Fala logu!

_ Ele mi ofendeu, profe! Tomé é o …

_ Particularmente, gosto do nome!

_ Não, psô! Num é nomi… é xíngu!

Tomé! Sem chance de tradução pública. Puxei farinha para os neologismos. Novesforagírias!

_ Puxá farinha é f…psôra! Tá ligadu?

_ Ligada!

_ Tamém não! Cê precisa falá “tô ligada”, tendeu?

_ Hummm?

_ Ligada é… é… sacô?

_ E… fala novisfora naum! Artigo 121, profis!

O processo extrapolou a forma. Forma. Mandar alguém “tomar na forma”, é ser “posturado”. Elegante. Maneiro. Sensível ao contexto. Educado. “Opinudo”. “Opedroso”. Minha opinião foi para o saco. Investigação, que se diz e pede. Como a boca do povo.

_ Boca do povo não, profs! Daí cê tá quebranu’s braçu!

Boca do povo não! Cair nela é passar atestado de “aposturado” frente às hormônicas condições sexuais de cada dia. Não pode!

_ Diz mal da mulé, sacô?

_ Saquei…

Gargalhadas quentes. Vapores da chuva teimosa.

_ Profis, cê tá analfa dimais!

Estava. Fiz gravata entre neologismos e gírias. O riso abrindo a alma sem fechar as portas do céu.

_ Fessora, fala nada! Fechá o céu não dá!

Fechar o céu não dava. Equivalia ao que eu não queria dizer e, abria direito à resposta. Estava sem. Quase sem, para não ficar tão fora do quadro.

_ Fora du quadru tamém não…

_ Meló ixpricá o rodrigs, profe!

_ Aluno novo?

_ Cabô di falá, profis?

_ Ele?

_ Cê, profis. Ocê! Comédia!

“Rodrigs”, de alguma forma, ligava-se às tentativas de explicação sobre a ressignificação. Neologia. Criação de palavras. E o pé descalço nas gírias. Desgiriada, fui e voltei. Laboratório de versos.  Lembrei-me de alguns: Pedro pedreiro, de Chico Buarque: “Pedro pedreiro, penseiro/esperando o trem (…)”; Neologismo, de Manuel Bandeira: “…inventei, por exemplo, o verbo teadorar. / Intransitivo. / Teadoro, Teodora. /”; e Carnavália, de André Antunes: “Repique tocou/O surdo escutou/E o meu corasamborim (…).”

Síntese, se possível:

_ Tud’umesmu, psô!

_ … não exatamente. Vejam…

Vi. No intento de corroborarem a própria teoria, aceitaram de boa vontade executar uma atividade em pendência: oficina descritiva com foco lexical. Duas horas de “não é isso, profis”, espetavam-me.

_ Dá não…essa daí cê não qué usá aqui, pró. Qué não! Si quisé…vai dá ruim.

Saussure desejou presença. Meillet pediu passagem e, Possenti teria rolado as tranças.

_ Ia não! Rolá as trança é…é… só falano n’uvidu!

Falou! Como se fala /no/ ventilador. Descortesia não fazer cara de susto. Para mim, a surpresa estava no gatilho ausente. Para a turma, o gatilho era “fraga” pronta. Não “fraguei” . O tempo foi amigo.

_ Psôra, a genti vai começá falanu du ôtru, né?

Começamos o interminável! Funciona assim, em língua e linguagens. Puxou, rolou!

_ Rola não!

_ Fraga?

Quase! Enunciação em Benveniste e Authier-Revouz mereciam reparo. Reparava-me diante da turma avivada pelas ocorrências linguísticas. Chamando às falas as mãos cúmplices, não podemos contar tal qual se deu, mas alguns exemplos valem o esforço. Alunos em círculo. Escrita. A chuva engolindo a cauda _ pode-se imaginar que o objeto desta oração deveria ser outro. Postulados no contexto, convencemo-nos de que as sinonímias pecam. Por distância. Então, a elegância deu espaço para o “menos”. Diante de vários recortes e censuras, decidimos apresentar algumas expressões do grande rol de ressignificações.  Evocam picardias, daí pedirmos escusas antecipadamente. Lembrando a todos e todas que se trata de apenas “um” recorte. Outros exemplos existem, contudo, aqui não se fazem presentes por risco à natureza desta escrita “posturada”. Ei-los:

_ /Calvo / s.m. e/ou s.f. * Não se relaciona à calvície. Origem: meme viralizado. Xingamento não traduzível aqui.

_ /Mecânico/ s.m. e/ou s.m. * Não se relaciona à profissão. Comumente dirigido a pessoas bonitas com grande portifólio de “ação social”.

_ /Ação social/ adj. * Não se relaciona ao comunismo. Diz-se da pessoa que “passou o rodo”.

_ /Passou o rodo/ or. t.d.* Não se refere ao ato de promover limpeza. Diz-se de quem “pegou” o maior número possível de parceiros em dada ocasião.

_ /Pegou/ v.t.d.  e v.t.i. * Não se refere ao processo de segurar, fixar, colar, mas está diretamente ligado às possibilidades que a intimidade lábio lingual permite, entre outras peculiaridades concernentes ao conjunto do ato.

_ /Pedreiro/ s.m. e s.f. * Não denomina o profissional da construção civil. Refere-se à nominação dos “gente boa” em estado de “ação social”.

_ /Gente boa/ adj. * Não se refere à designação óbvia Diz-se do homem ou da mulher com excesso de “quilometragem” no quesito “ação social”.

_ /Quilometragem/ s.f. * Não faz parte do universo das medidas. Diz-se do mapeamento sexual que o sujeito apresenta/não apresenta em sociedade.

_ /Normal/ adj. 2 gên. * Não se refere à normalidade. Antes, define as pessoas que vivem sob as próprias regras (sem regras).

Os vocabulários, em seus devidos processos de ressignificação, dão-se como samambaias. Aguou… vingou. As significações que o contexto nem sempre antecipa só podem ser alcançadas com o pé na história. E história não falta aos meus terceiranistas.


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