Teatro do Coração

Rafael Muller

Abrem-se as cortinas do palco teatral do novo Olimpo moderno, ultramarino, confluente do oriente e do ocidente. Estão em cena o Desejo, a Razão e o Coração do homem rico, do homem comum e do homem pobre. Um roubo ocorreu. Os deuses observam. Desejo e Razão dos três conflitam-se. O Coração, que é um só, arbitra. Quem será o ladrão e quem será o roubado?

O Desejo do homem rico nada pode dizer sobre ser roubado: são tantos os seus bens, incontáveis que são, que a subtração de algum não lhe faz falta e não lhe chama à atenção. Mas sua Razão garante: não sou o ladrão, para quê roubaria, tendo já tantas posses e tantos bens?

A Razão do homem pobre nada pode dizer sobre ser o ladrão: é tanta a sua necessidade, que roubaria se lhe fosse necessário à sobrevivência. Mas seu Desejo garante: não sou o roubado, como poderia, posto que ainda tenho tanto a desejar?

A Razão do homem comum, pensando-se árbitra, conclui: havendo a coincidência entre a Razão do homem pobre (que não pode garantir não ser o ladrão) e o Desejo do homem rico (que não pode garantir não ser o roubado), será, pois, o pobre o ladrão e o rico o roubado. O seu Desejo confirma: condene-se o pobre! [um dia serei rico e não desejarei ser roubado].

O deus da ciência, na plateia, ouvindo falar a Razão do homem comum com base em tantas evidências empíricas, aplaude calorosamente. Acompanha-o nas palmas o deus da propriedade privada, assim que o Desejo encerra suas últimas palavras.

***

O Coração, que é um só e verdadeiro árbitro dos conflitos e sapientíssimo, em nossa história intervém:

– Rico, teu Desejo calou sobre ser roubado, mas porquê não mencionaste que compraste do ladrão as coisas roubadas para aumentar seu lucro? Que roubaste, tu mesmo, dos ladrões? Que ladrão sois?

– Pobre, tua Razão calou sobre ser ladrão, mas porquê não mencionaste que sabes que tua falta decorre do acúmulo de todas as coisas pelos ricos? Que roubado, tu mesmo, já o fora antes [e depois novamente ao vender o produto do roubo a preço menor]? Por que não te defendeste?

– Homem Comum, falaste e falaste, mas em momento nenhum calaste-te para refletir: basta a mera coincidência para o julgamento da verdade? Eres tua Razão e teu Desejo, acaso, os verdadeiros árbitros dos conflitos mundanos? Estão mesmo em ti em concordância Desejo e Razão? Se o Desejo queres que seja rico e Razão não queres que seja ladrão, como podeis concordar entre si?

A todos direciona o Coração: – Onde buscai a paz?

O deus da ciência, na plateia, argumenta: na Razão, ora! A Razão do rico o defende e a Razão do homem comum chega a alguma conclusão. Majoritariamente, 2×1, a Razão não se cala e é boa.

O deus da propriedade, na plateia, autocrático: no Desejo, ora! O Desejo do homem comum condena o roubo e isso basta! Pois o roubo há de ser intolerável sob quaisquer condições! É a palavra e a verdade absolutíssima!

***

O Coração, que em nossa história não se retira cabisbaixo, posto que ainda é chama que arde viva e não se descansa, aponta:

– Ó deus da ciência, como podes, ainda, legitimar-se na maioria? Se temos tão claro que a maioria cala ou é tola (tantas razões, tantos desejos, de tantos homens), não devia estimular aos homens que apenas opinassem depois de efetivamente ouvidos seus Desejos, suas Razões e o Coração?

– Ó deus da propriedade, como podes, ainda, desejar-se tanto autolegitimar-se em si mesmo? No Império do Desejo? De nada contigo adianta argumentar, pois não – sequer – raciocinais. Como terás Coração de árbitro se não há o que arbitrar no Império absoluto do Desejo?

***

Por fim, o Coração sapientíssimo intervém:

– Homem rico, eres o ladrão e não sofreis em sê-lo pois seu Desejo e sua Razão estão em harmonia no mal.

– Homem pobre, eres o ladrão e o suportas em sê-lo pois seu Desejo e sua Razão estão em harmonia no bem.

– Homem comum, eres o ladrão e tens a opção de sofrer ou não com base em sua consciência ou ignorância: se optas pela revelação, percebei a si mesmo como ladrão e poderá entrar em harmonia no bem, mas o sofrerá  sendo, ainda, ladrão.

– Deus da ciência, eres tu o roubado em sua própria Razão. Não servis, como se apresenta hoje, a nada, posto que está destituído de seu grande poder.

– Deus da propriedade, eres tu o mandante maior do roubo e receptador final de toda a Razão roubada do deus da ciência e de todos os homens. Apesar disso, tu-mesmo não possui sequer a Razão roubada, tal demoníaco e destruidor tu és.

 

Nota
(1) Agradecimento especial ao grande poeta e filósofo cazaque Abai Kunanbaev em seu “Book of words” pelas palavras inspiradoras para este texto.


Imagem em destaque: Unsplash

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