Notas sobre a vivência da pandemia por famílias e crianças das ocupações urbanas

Luciana Maciel Bizzotto1

Coletivo Geral Infâncias

O contexto da pandemia da Covid-19 aproximou o Coletivo Geral Infâncias das comunidades das Ocupações Rosa Leão e Dandara, em Belo Horizonte. Nós desejávamos aprender e colaborar de algum modo com famílias e crianças que vivenciavam uma situação de agravamento da privação de direitos. Já falamos, em outro momento, sobre como a pandemia tem afetado populações de maneiras distintas, acirrando as desigualdades sociais que vivemos em nosso país e no mundo. Contudo, hoje gostaríamos de trazer alguns elementos observados sobre como as crianças nas ocupações têm vivenciado esse momento.

Ao serem perguntadas sobre como está a vida nos últimos meses, o primeiro ponto que se destaca nas falas das crianças é a falta da escola. Ainda que, inicialmente, a grande preocupação com o fechamento das escolas estivesse conectada ao atraso nos processos de aprendizagem, a pandemia acabou por jogar luz acerca da escola como importante espaço de interações sociais entre as crianças. Isso não seria diferente na vivência das crianças que vivem nas ocupações.

Diante dos desafios de acesso a telefone celular e internet enfrentados pelas crianças e suas famílias, iniciativas por parte das comunidades escolares surgiram e seguem surgindo na tentativa de aproximá-las dos afetos construídos na escola. Em cartinhas escritas por crianças da Ocupação Rosa Leão destinadas a professoras e professores, são revelados, ao mesmo tempo, a saudade e o desejo de estar novamente juntas dos amigos e dos profissionais da escola. 

A coordenação da comunidade se organizou junto com a diretora para a realização da atividade. Nos bilhetes, as crianças relembram as brincadeiras, a merenda, a hora do recreio, e também falam da falta de estudar. Já na Ocupação Dandara, professores e professoras de uma escola utilizaram um carro de som para levar mensagens e conteúdos educativos para alunas e alunos que moram na comunidade. Em meio às medidas de distanciamento social, surge uma ideia criativa para manter a conexão.

Para além do fechamento das escolas, a interrupção de várias atividades realizadas para as crianças nas comunidades, diante do temor de contaminação, também foi algo que atravessou seus cotidianos. A redução da presença da rede de apoiadores das ocupações nos territórios contribuiu para uma mudança na circulação das crianças dentro do próprio território, considerando as possibilidades de socialização que antes elas podiam experimentar através das atividades realizadas.

Por outro lado, a pandemia viu fortalecer nas ocupações os processos de mobilização e coordenação internos, a fim de lidar com o aumento da oferta de doações feitas pelas redes de solidariedade que se multiplicaram em um primeiro momento, e com o crescimento da demanda interna da comunidade, acirrada pela crise econômica e o desemprego que ainda afligem o país. A organização das coordenações locais para receber e distribuir cestas básicas, cartões alimentação, demais doações de alimentos e outros produtos contou com a participação das crianças, que se aproveitaram da oportunidade para circular e levar informação para a comunidade.

Voltando o olhar para a situação dentro das casas, em conversa com as mães de crianças moradoras de ocupações, a exaustão e o cansaço é elemento notável. Os relatos de experiência são variados: enquanto uma mãe conta a dificuldade em lidar com o uso abusivo de celular por parte do filho adolescente, a outra compartilha a decisão da filha mais velha de dez anos, que foi passar um tempo com a avó porque estava cansada de ajudar com as tarefas domésticas. Ainda merece destaque o desabafo da mãe sobre o desafio e oportunidade de estar com os filhos dentro de casa, que antes frequentavam a Escola Integrada: “Pela primeira vez, eu pude ser mãe, porque eu não tinha onde deixar as crianças”. A alegria em poder partilhar mais momentos em família também está presente no discurso das crianças.

Desde o final de 2020, as ocupações vivenciam uma situação crítica de escassez de doações e apoio externo. A luta das comunidades, que já viviam seus constrangimentos dados pelo cenário político nacional de privação de direitos, se soma ao atual contexto pandêmico, que vive um crescimento exponencial do número de mortes, o descaso e a morosidade na vacinação e a restrição do auxílio emergencial. Nesse quadro, os momentos de troca com as famílias das ocupações revelam uma angústia das crianças, ávidas por espaços e oportunidades para brincar e estar com outras crianças. Assim como fica evidenciado também o desejo das mães pelas redes de troca, além de suporte material e afetivo. E assim, a luta continua.

 

1Doutoranda em Educação e Inclusão Social, pela Faculdade de Educação da UFMG, na Linha de Infância e Educação Infantil. E–mail: bizzotto.lu@gmail.com.

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Aproveitamos o espaço para compartilhar a notícia de que, em fevereiro deste ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou a suspensão dos despejos na pandemia de Covid-19, indicando que os juízes tenham especial cautela nos casos que impliquem remoções coletivas durante essa situação, especialmente, no caso de pessoas em estado de vulnerabilidade social e econômica. Ainda que a recomendação não obrigue os juízes a evitarem os despejos, é uma vitória fruto das mobilizações de movimentos populares junto com as famílias, e que contou com o suporte da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).


Imagem de destaque: Liliane Pelegrini (BENDITA CONTEÚDO & IMAGEM)

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