Infâncias e desigualdades sociais: privilégios da quarentena?

Karina Lúcia Pereira*

Luciana Maciel Bizzotto**

Coletivo Geral Infâncias

A visão democrática da ação viral do Covid-19, mais do que uma limitação em compreender os diferentes estágios de uma pandemia, é resultado de um movimento de constante negação da sociedade desigual que constituímos. Ainda que os casos importados e o período de transmissão local, inicialmente, tenham como vítimas potenciais as famílias de renda média e alta – em sua maioria, branca -, a atual fase de transmissão comunitária não deixará de afligir potencialmente os povos historicamente invisibilizados em nosso país: trabalhadores informais, pobres, negros, periféricos, em situação de rua, LGBTs, indígenas e povos tradicionais, mulheres e crianças. É precisamente sobre como essa disparidade se instaura no universo infantil durante a pandemia que escrevemos hoje.

Perguntas específicas foram levantadas dentro do nosso Coletivo: como o coronavírus afetou a dinâmica entre pais e filhos e o que as crianças têm feito em casa nesse período? O reinventar das nossas práticas de trabalho não fez com que o olhar e a escuta com e para as crianças fossem deixados de lado. Nosso interesse pelas infâncias nos faz atentar para a realidade do momento, sem negar períodos de conflitos e emoções afloradas.

É tempo de estarmos mais próximos, retomar as brincadeiras da nossa infância, preparar e comer juntos as refeições. Entretanto não podemos nos iludir. A ideia romântica de que a quarentena é uma oportunidade de restabelecer novos laços afetivos entre os familiares não é necessariamente uma verdade em todos os lares. É preciso desconstruir o mito da família como porto seguro e agradável de toda e qualquer criança. Muito se tem falado sobre outras vivências desse momento, com destaque especial para aqueles casos em que a dor e a negligência foram e seguem sendo experimentadas por crianças e mães de família. Não podemos perder de vista que a quarentena implica o enfraquecimento ou o rompimento com a esfera pública do que constitui a rede de cuidado de uma criança. E ainda que os choques dessa quebra sejam sentidos de modo generalizado pelas famílias, seus efeitos variam drasticamente conforme o grau de centralidade que o governo ocupa nessa rede de cuidado.

Como destacado por Ilana Katz, as escolas assumem um papel fundamental em nossa  organização social, contribuindo para alinhar o esquema de nossas vidas. Em uma sociedade desigual, a instituição escolar também é palco dessa desigualdade. Contudo, ainda que o sistema educacional brasileiro precise de mudanças, a escola segue sendo o lócus do cuidado, da socialização e da possibilidade de redução dessas desigualdades. Um exemplo claro disso, nesse momento de pandemia, diz respeito à segurança alimentar. Enquanto a Organização Mundial da Saúde recomenda uma nutrição saudável como medida de prevenção durante o confinamento, a ONU estima que 40 milhões de crianças no Brasil estão sem receber alimentação escolar devido à quarentena. Desse modo, a alternativa adotada pelos governos foi o redirecionamento dos itens da merenda escolar para as famílias de crianças e adolescentes matriculados em instituições de ensino públicas.

Entretanto, como compensar os demais papéis que a escola protagoniza na vida da criança? É aqui que o debate sobre a educação à distância se torna espinhoso: quando se compreende que não somente os contextos familiares são desiguais, mas também as escolas reproduzem essas desigualdades. Portanto, as oportunidades de formação continuada das profissionais de educação, de acesso a computadores, tecnologias digitais e internet, dentre inúmeras outras, não são as mesmas. Afinal, educação vai além de algoritmos e advérbios.

Outro aspecto a ser observado neste contexto é como a ausência da circulação por conta do distanciamento social surte seus efeitos na cidade de diferentes modos. Nos territórios populares urbanos, onde a rua sempre foi a extensão da casa e a coabitação muitas vezes torna os ambientes superlotados, o brincar lá fora continua sendo a principal atividade das crianças. Nas vilas e favelas, dada a situação de pobreza e marginalização social em que as famílias vivem, as crianças produzem uma cultura própria de seu espaço na cidade, conforme aponta Sarmento. Isso explica, em parte, a resistência em seguir diretrizes apontadas pelas autoridades para prevenção do novo vírus, o que para além de uma questão cultural, esbarra ainda nas desigualdades de acesso às infraestruturas urbanas.

Enquanto a principal medida de prevenção recomendada para conter a Covid-19 é lavar as mãos com frequência, 35 milhões de brasileiros moradores de comunidades e periferias não têm acesso a água tratada. A ausência de um sistema de esgoto público deixa as pessoas mais vulneráveis, propensas a doenças, e as crianças são as que mais sofrem, com milhares de internações anuais por diarréia grave. Os desafios vividos pela periferia neste momento não se restringem à precariedade do saneamento básico. Além disso, o isolamento social para prevenção da pandemia pesa menos do que a fome nos espaços em que predomina a informalidade e a insegurança da renda. Se o medo da morte é o que nos mantém em casa, o que dizer para aqueles cujo domínio do medo tornou-se estratégia de sobrevivência?

Nosso histórico de desigualdade, somado à negação por parte do Estado da garantia dos direitos sociais básicos previstos na Constituição (como acesso à moradia digna, ao saneamento básico, à educação, à saúde e ao transporte), fez com que os direitos pertencessem a uma parcela exclusiva da população, tornando-os privilégios. O resultado disso é que a luta por políticas públicas que façam valer os direitos do povo marginalizado, como as crianças, é vista como assistencialismo. Assim, emergem os discursos meritocráticos para desmontar qualquer tentativa de implementação de um Estado de bem-estar social. O cenário não é devido ao novo coronavírus. Fracasso do capitalismo ou vitória da nossa desumanidade?

Uma vez que os auxílios emergenciais do governo não são suficientes e imediatos, muitas ações de mobilização social têm surgido para contribuir com a sobrevivência de famílias ao isolamento, investindo no espírito comunitário e solidário. Algumas plataformas reúnem iniciativas nesse sentido, como Segura a Onda, Comoajudar.net e Periferia Viva, numa tentativa de suprir o fracasso do Estado em promover a vida.

É preciso cuidar para não confundirmos privilégios com direitos. Temos de estar atentos para que a falta não justifique o controle desmedido das classes populares por parte daqueles que sempre dominaram o poder político e econômico. A pandemia nos abre para uma nova oportunidade de diálogo sobre cidadania, cuidado coletivo e humanidade. Múltiplas são as infâncias e as desigualdades, mas um único desejo: mais equidade.

*Bacharel em Biblioteconomia, Especialista em Administração Pública, Servidora Pública Municipal. Email para contato: kklupe@yahoo.com.br

*Doutoranda em Educação e Inclusão Social, pela Faculdade de Educação da UFMG, na Linha de Infância e Educação Infantil. Email para contato: bizzotto.lu@gmail.com.


Imagem de destaque: Ação solidária distribui alimentos para famílias na Chácara Santa Luzia, localizada na Cidade Estrutural, em Brasília. Foto: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília.

 

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