Espetacularização da experiência de pesquisa: um comentário sobre a iniciação científica – exclusivo

Alexandre Fernandez Vaz

“Isso aí uma escola”, me disse de maneira algo enigmática o barbeiro, já lá se vai um ano. Referia-se a um pequeno aparelho de televisão colocado em frente à cadeira em que exerce seu ofício, mas a uma altura que exige, tanto dele quanto dos clientes, que se movimente o pescoço para alcançar as imagens na tela. Passava uma novela infanto-juvenil naquele final de tarde e os estímulos sonoros e visuais típicos demandavam a atenção e a distração de nossa percepção já, por sua vez, prefigurada pela exposição midiática de uma vida. A preocupação do barbeiro era com os movimentos do pescoço dos clientes e o estrago que a afiada navalha podia neles perpetrar a cada movimento brusco em direção ao irresistível e onipresente aparelho de TV, pai e avô das novas mídias, peça frequente do mobiliário doméstico e comercial, aparato axial da indústria do entretenimento do último meio século no Brasil.

Lembrei-me do bom profissional da barbearia simples na porção continental da cidade de Florianópolis ao ler no informativo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que o formato das apresentações da Semana de Iniciação Científica de 2016 mudaria. Os trabalhos já não seriam mais apresentados na forma de pôster, mas o ato final de um ano de bolsa seria coroado pela montagem de um vídeo, de dois a cinco minutos, a ser postada na plataformaYoutube. Embora parte da justificativa para tal decisão tenha me parecido razoável, ao dizer na busca de um processo mais sustentável (de fato, a maior parte dos pôsteres virava papel descartável ao final do evento), não pude deixar de sentir certa consternação.

Há algo na iniciativa que parece atender a um imperativo do presente, que é o da espetacularização visual de tudo, processo que se amplia em proporções geométricas na medida em que cada um pode ter sua própria câmera e editor de imagens no bolso, em seu “celular esperto”. A demanda se coloca ainda em outro plano, que é o da exigência – ou melhor, da suposição – de estar “presente” nas redes sociais, sem a qual a apresentação no Youtube se restringiria, por falta de divulgação, aos avaliadores da UFSC e do CNPq que se encarregarão dos trabalhos. Não tive como não pensar no barbeiro classificando um dos principais produtos da televisão brasileira, a novela, como uma “escola”.

O movimento não é, propriamente, uma novidade. CAPES e CNPq têm solicitado, aqui e ali, que se produza vídeos que possam ser capazes de popularizar os resultados de pesquisas para um público mais amplo que aquele formado por especialistas que alcançam ler os relatórios e papers. Revistas acadêmicas, cada vez mais à vontade em suas plataformas multimídias – muitas já nasceram exclusivamente em tal formato –, também têm ido pelo mesmo caminho, inclusive algumas da área de Educação. Ainda não se decretou o fim da escrita, mas estaremos tendencialmente próximos disso? Ela terá forças para se manter como recurso comunicativo e expressivo da pesquisa? O que a UFSC parece sinalizar – assim como as agências de fomento e os periódicos – é que talvez estejamos passando por uma transição no modelo de elaboração e divulgação científica, em que o ordenamento visual vai suplantando a forma escrita. O que já sabemos é que o espetáculo vai ganhando terreno como forma de apresentação da pesquisa. Incidirá ele também sobre as formas de pesquisar?

Bem, quem frequenta eventos acadêmicos pode observar, sem muito esforço, que o espetáculo é constantemente a forma mais sedutora de apresentação de uma comunicação ou conferência. É preciso mais que tudo impressionar. Não estou desmerecendo o caráter expressivo que a oralidade deve conter, o que inclui o emprego dos recursos corporais – como a voz – a favor da exposição. Questiono, no entanto, o clima de programa de auditório, de fleuma vazia, que faz lembrar certa dinâmica de cursos pré-vestibular (outra excrescência, aliás, do nosso sistema). É daí que emerge uma figura comum em eventos educacionais, principalmente aqueles destinados a professores em larga escala, mas não só: o palestrante. Não importa o que diz, mas que impressione, como “prenda a atenção”. Não é casual que esta nova figura esteja aparentada com outra, a do youtuber. A proposta de produzir apresentações de trabalho no Youtube só radicaliza – ou nem isso – uma situação já posta.

Considero o processo mais complicado porque no caso da Semana de Iniciação Científica da UFSC ele atinge alunos de iniciação científica, tanto os da graduação, geralmente com bolsa PIIBIC, quanto os do ensino médio vinculados ao programa PIBIC-EM. Se é certo que se trata de gerações que já se constituem na dinâmica das redes sociais e para as quais um aparelho celular é como uma peça íntima do vestuário, então temos um problema talvez ainda maior. A produção científica deve reforçar o vínculo com esse modus operandi que é o das novas gerações – e das não tão novas – ou poderia e deveria investir em uma forma menos frenética e “empolgante” de fazer ciência, motivando outro ritmo, mais artesanal, que obrigasse o pensamento a uma elaboração menos espetacular e mais cautelosa? Ou isso seria apenas anacronismo? Não tenho respostas convictas para essas questões, mas suponho que sempre seja bom estar com um pé atrás em relação às perversidades do espírito do tempo.

No entanto, talvez haja potência no movimento contraditório a que assistimos, que nos compõem como gente do sistema de ciência e tecnologia. Quem sabe, na inverdade resida um núcleo negativo de verdade a pôr sob tensão a proposta da UFSC, oferecendo-lhe a possibilidade de superação de si: não seria o caso de se incorporar nessas apresentações de alunos de iniciação científica para o Youtube componentes estéticos que pudessem potencializar expressivamente os trabalhos? Isso colocaria um desvio para a ciência, ao extrapolar seus contornos, mas com vantagens para ela. Entre o risco da mera reprodução de clichês e de certo esteticismo, sempre presentes, talvez haja algo possível. Vale a aposta nesse exercício errante.

Zurique, setembro de 2016.

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