Drogas, estigma e saúde: a construção do cuidado da população em situação de rua

Priscilla Victória Rodrigues Fraga¹

A população em situação de rua é um grupo heterogêneo, mas que possui em comum a extrema pobreza, fragilização ou ruptura dos vínculos familiares, inexistência de moradia convencional e utilização de logradouros públicos como espaço de moradia e sustento. O grande número de pessoas em situação de rua no Brasil é fruto do agravamento de questões sociais, com destaque à rápida urbanização ocorrida no séc XX, a migração para grandes cidades, a desigualdade social e a pobreza.

É uma população em permanente vulnerabilidade, seja por não ter documentos (o que é indispensável à cidadania), por não possuir casa, dinheiro, emprego fixo, não ter acesso à educação ou por encontrar dificuldades para receber cuidados em saúde. Mesmo quando há serviços públicos nos territórios que ocupam, as pessoas em situação de rua possuem diversas barreiras de acesso (simbólicas, impregnadas de estigmas, preconceitos e, por vezes, burocráticas), o que impede a efetivação de direitos sociais. 

As condições de saúde podem indicar a causa ou a consequência da vida nas ruas, sendo o uso prejudicial de álcool e outras drogas, para muitos, o elemento desencadeador do processo de fragilização e de rompimento dos vínculos familiares. Entretanto, para outros, esse uso corresponde a um processo necessário de “anestesia” para suportar a difícil permanência nas ruas (ESCOREL, 2009)

O uso do crack atraiu as atenções no panorama político-midiático brasileiro em 2010, quando atribuíram à substância a causa de crimes violentos e por uma suposta degradação moral por parte da juventude, corroborando diversos mitos (SOUZA, 2016).⁠ Essa percepção equivocada sobre o usuário de drogas sustenta o preconceito com a população mais pobre, tomada, pelo senso comum, como agente dessa violência e que passa a ser a fonte de todos esses conflitos, representando o “mal da sociedade”. 

A mídia vem retomando discursos higienistas em relação aos usuários de crack, com reportagens e noticiários abordando o assunto de modo amedrontador, destacando a limpeza social, internação compulsória e conteúdos repletos de denominações pejorativas, legitimando a repulsa da sociedade perante essas pessoas.

Fonte: Ártemis Garrido Dias. 

A imagem do usuário de crack não resulta de si, apenas, mas se revela como produto de uma histeria social e da construção de estigmas, evidenciando o imaginário social em relação às substâncias psicoativas. Mesmo se tratando de algo inerte, é interpretado como algo “vivo, forte, potente”. Como consequência, vê-se o surgimento de uma suposta “guerra às drogas” que desumaniza os sujeitos que fazem o seu uso – muitas vezes chamados de  “zumbis”–, negando o processo de exclusão social ao qual estão submetidos.

Na contramão desses estigmas, uma pesquisa (SOUZA, 2016) revelou que a prevalência de uso regular de crack nas capitais brasileiras era de 0,8% da população adulta, demonstrando um dado muito distante da prevalência estimada de dependência do álcool, que é de 8 a 15 vezes maior. A pesquisa ainda aponta que, apesar de o tema “classes sociais” não aparecer no debate midiático, é o eixo central pelo qual se articulam as formas discursivas, gerando mitos e ocultando o que, na verdade, se trata de uma guerra velada às classes mais pobres.

Dentre as ações voltadas para essa população, em Belo Horizonte se destaca a atuação do Consultório de Rua (CdeR), um serviço itinerante do SUS que busca ofertar cuidado em saúde in loco por meio de uma equipe multiprofissional, considerando o contexto sociocultural, para a garantia do cuidado às pessoas em situação de rua. 

O CdeR se propõe a fazer uma ponte entre os usuários atendidos e os demais serviços da saúde e da rede intersetorial, na tentativa de garantir o direito à saúde e minimizar as consequências do processo de exclusão, que gera efeitos perversos na vida desses sujeitos. Orientado pela perspectiva da Redução de Danos e da luta antimanicomial, esse dispositivo de saúde opta por atuar nos locais com maior concentração de pessoas em situação de rua, com destaque para as cenas públicas de uso de drogas. 

Na perspectiva da saúde mental, o uso abusivo de drogas é um sintoma e não a causa do sofrimento do usuário, por isso, é fundamental o seu protagonismo durante o tratamento, visão importante para referenciar serviços como o Consultório de Rua no atendimento a esses grupos (GARCIA, 2017)

 

1 Mestranda do Programa em Saúde Coletiva da Fiocruz Minas e coordenadora do Consultório de Rua da Prefeitura de Belo Horizonte.

 

Referências

ESCOREL, S. A saúde das pessoas em situação de rua. In: Rua aprendendo a contar. Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua. Brasília, DF; 2009.

GARCIA, D. R. Arte e Sociedade: Ações no Cotidiano das Cenas de Uso de Drogas. Universidade do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2017. 

SOUZA, J. (ED.). Crack e exclusão social. Brasília. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas; 2016.

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de Destaque: Ártemis Garrido Dias. 

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