Do avanço da religião no Estado laico brasileiro

Evelyn de Almeida Orlando

Os resultados parciais das últimas eleições municipais, assim como algumas análises que busquei acompanhar sobre o evento, destacam a perda de espaço do atual presidente, que conseguiu emplacar apenas dois de seus candidatos ao executivo em âmbito municipal. Se isso é um bom sinal no Executivo, já no Legislativo, sinto certa dúvida sobre um aparente recuo do Bolsonarismo.

Se não podemos articular Bolsonaro a nenhum partido e, portanto, a nenhuma grande vitória visível, e isso cria a impressão de que o bolsonarismo pode estar diminuindo, é preciso atentar para suas bases aliadas. E uma das principais delas é a bancada religiosa.

Entre os partidos eleitos, há uma preponderância da direita aparentemente fragmentada, mas marcando presença em número maior do que a esquerda. Entre esses partidos, muitos são religiosos e cumprem bem o papel de proteger a família e a moral, ao apoiar o discurso que elegeu o atual presidente. Coerente com seu discurso em defesa da família, essa base aliada se encarregou de proteger a família Bolsonaro, no Rio de Janeiro, por exemplo, com a eleição de Carlos Bolsonaro, filiado ao Republicanos, partido representante da bancada evangélica, designadamente da Igreja Universal do Reino de Deus, o qual é presidido pelo bispo Marcos Pereira. Sua forma de atuação nas eleições, orientando os votos dos fiéis, vem dando mostras da sua eficácia. 

Essa forma de agir, diluída nos partidos fisiológicos, reflete a capilaridade da religião na política. Nos partidos, nas mídias (esta de modo privilegiado), nas escolas, nas igrejas, os neopentecostais vêm (re)construindo a mentalidade conservadora da sociedade brasileira desde os anos 80, quando a Terceira Onda do Pentecostalismo se configura no Brasil, com a figura da Igreja Universal do Reino de Deus.

O amálgama entre Estado e Igreja que se pretendia superar com República e a instauração do estado laico, na verdade abriu espaço para a emergência de outras religiões que passaram a disputar para além do campo religioso, também o político. Protestantes, pentecostais e neopentecostais aos poucos foram entrando e ganhando força no Brasil, cuja cultura é essencialmente cristã, e desenvolveram um sólido projeto educacional de conformação das mentes e moralização dos costumes. Expressão disso é a naturalização da significativa bancada religiosa que temos, tanto em nível federal quanto municipal, que se constituíram como tal pelo aparente jogo democrático. O Estado é laico, mas a população é religiosa e ela define o Estado. Mas quem forma a população? Quem orienta suas ideias? Quem orienta o seu voto?

O neopentecostalismo que surge a partir da década de 1970 nos EUA, no sentido de frear a Teologia da Libertação e sua pauta progressista, ganha assento no campo político brasileiro também com o objetivo de frear os avanços progressistas. Pautado na Teologia da Prosperidade, orientou-se para as camadas médias e altas da sociedade, associando a ideologia neoliberal às bênçãos divinas, em contraposição à agenda orientada pela opção pelos pobres que ganhou corpo nas Conferências de Medellin (1969) e Puebla (1979) e na Teologia da Libertação. Além disso, trazia consigo um claro projeto colonizador americano, em oposição às propostas emancipatórias dessas reuniões, de se produzir na/para a América Latina uma Teologia mais conectada com nossa realidade sociocultural e econômica.

O fato é que com promessas de prosperidade, da moralização de costumes, de cura e de livramentos do mal, as igrejas neopentecostais vêm conquistando cada vez mais adeptos, que não apenas as endossam, como se tornam colaboradores na propagação de um projeto cuja principal núcleo de sustentação é a família. Com isso, vêm produzindo uma ideologia moral que fortaleceu e reavivou o conservadorismo da sociedade brasileira, incutindo uma forte rejeição a tudo que fosse contrário a essa ordem como símbolo do mal e das ações do demônio na sociedade.

Esse pensamento conservador tomou corpo no impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, em 2016, quando os deputados, em um estado laico, votaram unanimemente “em nome de Deus e da Família”. A moral que balizou o impeachment também balizou o endosso de vários segmentos da população à campanha presidencial de Bolsonaro, novamente em defesa da família e dos bons costumes, e serve para frear qualquer agenda mais progressista em relação à gênero e sexualidade no Brasil.

A moralização da sociedade passou por um longo processo de educação, coordenado pelas igrejas, e vem apresentando seus desdobramentos no campo político e social, processo que foi ganhando corpo sem que percebêssemos o que representava e que continua a pleno vapor. As análises dos resultados das eleições indicam que subestimamos nossos adversários quando eles parecem menores e pouco expressivos, e talvez esse esteja sendo um dos nossos maiores erros. Subestimar a força da religião na construção do estado brasileiro é ignorar que a sociedade brasileira é religiosa por excelência. Como lidar com essa realidade? Talvez essa seja uma pergunta fundamental para pensarmos nossas ações para 2022.


Imagem em destaque: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

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