A arte da espiral político-social – construção de acontecimentos dignos da literatura

Gustavo Silva Neves

Ao longo dos anos, não é difícil perceber que a sociedade se desenha por ciclos, ou melhor, por espirais. Estamos num contínuo processo de adaptações, de revisões e de transformações. De repente, movimentos progressistas caminham a passos largos, mas no momento seguinte, (quando vêm as incertezas), nos tornamos mais conservadores e todo o progresso inicial parecerá perdido. Apenas parecerá.

O filósofo polonês Zygmunt Bauman, produziu com o sociólogo Carlo Bordoni, uma obra que retrataria o nosso movimento constante de experimentação. Ele chamou o processo de “Estado de Crise” (homônimo ao livro). No Brasil, a obra foi publicada pela editora ZAHAR, com impecável tradução de Renato Aguiar. Trata-se de uma análise muito produtiva a respeito da realidade inconstante que nos molda. Estamos mesmo sempre em crise! Nas últimas décadas, elas se sobrepuseram quase sem intervalo; crises econômicas, políticas, administrativas, humanitárias, crise de desemprego e crise de valores morais. Esta última, embora seja muito subjetiva, talvez seja a mais importante para o momento seguinte, que poderíamos chamar de ponto de virada. Tornamo-nos imorais?

De certo modo, sim!  Ao menos em comparação com o modelo de Moral adotado desde o Iluminismo. Nossa visão de mundo, de família, de amor, de respeito e de inclusão foi se modificando ao longo dos anos e o resultado, estamos observando desde 2018, (talvez até um pouco antes). Há os que lutam pelo progresso irrefreável e há os que tentam se prender aos costumes do passado. O conflito é inevitável.

A receita foi semelhante, avançamos muito, progredimos sobre as liberdades individuais e depois retroagimos. Símbolo máximo desse processo, as eleições brasileiras de 2018, apresentaram exatamente esse caráter. As lideranças políticas eleitas naquele momento, chegaram a afirmar que o Brasil era mesmo, um país conservador. Lá em 2018, não era uma mentira, tanto que essas vozes apegadas ao passado e aos modelos originais de Moral, foram eleitas. Contudo, ainda no primeiro parágrafo desta nossa conversa, atentei ao fato de que apenas parecemos distantes do progresso.

É importante salientar que movimentos semelhantes foram percebidos em todo o mundo. Figuras extremistas, ganharam visibilidade e ampliaram muito a sua influência. Nomes como, Donald Trump (EUA) e Marine Le Pen (França), ambos carregados de ideias retrógradas, passaram a movimentar o noticiário internacional.  Mas, a espiral não para e as mudanças, insistem em ser o nosso padrão. Nos Estados Unidos, a eleição do democrata Joe Biden em detrimento de Trump, demonstra um reposicionamento daquele país. Na França, Le Pen nem chegou a ser eleita e foi derrotada por Emmanuel Macron. E aqui no Brasil, não foi diferente. A resposta também veio das urnas.

Passado o primeiro turno das eleições de 2020, o que salta aos olhos é a confirmação de figuras extremamente novas no cenário político. Em Belo Horizonte, Duda Salabert (PDT), foi eleita com a maior votação da história da cidade. Mais de 30 mil votos numa pessoa fora dos padrões tradicionais. Duda não é necessariamente uma figura inédita, participa de diversos movimentos há mais de 20 anos. Mas, conquistar uma cadeira de vereança neste momento, diz muito da nossa espiral social. Não é um fato qualquer, uma mulher transexual ser eleita vereadora com tão expressiva votação. Especialmente agora, em que se acreditava que as forças do conservadorismo estariam consolidadas. E não se trata também de um caso isolado. Em São Paulo, maior colégio eleitoral do Brasil, outras duas personalidades transexuais foram eleitas com votação esmagadora. Erika Hilton (PSOL) e Thammy Miranda (PL) se elegeram com inegável aprovação popular, 50.477 e 43.297 votos respectivamente.

Em Recife, nas últimas eleições municipais (2016), a figura mais votada tinha sido a Missionária Michele Collins (Evangélica e conservadora). Neste último processo, a pessoa mais votada foi justamente uma mulher negra, ligada aos movimentos sociais, Dani Portela. A cidade de Recife, permanece elegendo mulheres, mas o perfil dessas mulheres eleitas mudou drasticamente.

É bem verdade que figuras conservadoras continuaram sendo eleitas. Claro, a questão não se resolveria de forma instantânea. Contudo, há de se comemorar uma reconexão! Não com a esquerda ou direita, não se trata disso. A conexão é ancestral e muito mais profunda. É um reencontro com a nossa humanidade. Enxergar no outro, uma pessoa, com sentimentos, com uma história, merecedora do nosso respeito e do nosso acolhimento. Não podemos mais nos limitar à condição sexual deste ou daquele. Precisamos nos encontrar. A cidade é isso, é o lugar do encontro. Onde todas as pessoas são bem vindas, onde todos terão o reconhecimento por aquilo que se é. A cidade não é dos progressistas, a cidade tampouco é dos conservadores, ela é das pessoas. As eleições municipais parecem gritar isso, uma celebração à humanidade, em todas as suas cores e manifestações. Que os ventos que incluem, continuem a soprar (e de preferência), cada vez mais forte!

Referências:

BAUMAN, Z. BORDONI, Carlo.  Estado de Crise. Editora Zahar: RJ,2016.


Imagem em destaque: ASCOM / SECULT

 

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