Da Universidade e suas contribuições para que tudo fique como está

Alexandre Fernandez Vaz

Há poucos dias, um professor de duas instituições de nível superior do Paraná empregou um ditado popular em desuso em uma de suas aulas. Para reforçar o que acabara de dizer, afirmou que quando estupro é inevitável, o melhor é relaxar e aproveitar. Tentando adiantar-se a possíveis críticas, admitiu, antes da desastrosa intervenção, que empregaria vocabulário chulo, pedindo às moças presentes que de antemão o desculpassem (os rapazes não desaprovariam o disparate?). Houve reclamações à direção da faculdade e o professor se retratou, mas tendo sido o ato considerado insuficiente frente à manifestação, foi demitido. A demissão se estendeu à outra instituição em que ele atuava.

A afirmação do colega foi vista como apologia ao estupro, crime hediondo e ponto culminante de uma cultura que tem a mulher como vítima e a violência como método. O demitido, em momento de autocrítica, lembrou do machismo estrutural que nos constitui, no que tem razão. 

Em 2007, em meio a uma crise aérea que desorganizou o país, a então Ministra de Estado do Turismo, Marta Suplicy, saiu-se com um “relaxa e goza, porque depois você esquece todos os transtornos”. Todo o passado de sexóloga não foi suficiente para salvá-la do deslize que lhe causou duras e merecidas críticas. 

Dezoito anos antes, em campanha para presidente da República, Paulo Maluf vaticinara o seguinte: “O que fazer com um camarada que estuprou uma moça e matou? Tá bom… Tá com vontade sexual, estupra, mas não mata!” Enquanto esteve na ativa, o melancólico personagem se defendeu dizendo que suas afirmações teriam sido tiradas do contexto em que foram proferidas. Todos sabemos quem foi Maluf, político que emergiu na ditadura civil-militar inaugurada em 1964 e que manteve a coerência até seus últimos dias de vida pública: sempre do lado errado da história. Ao contrário dele, Marta, malgrado os recentes equívocos que tanta decepção geraram, tem uma história política meritória.

Quando li na grande imprensa o imbróglio gerado pelo docente, chamou-me a atenção também um segundo tópico de seu discurso, o que ele disse antes e que o teria motivado à sua mais-que-infeliz declaração. Uma aluna esclareceu o início de tudo: “Um colega perguntou o motivo de os idosos não conseguirem se adaptar às novas tecnologias. O professor respondeu que, quando você é chefe ou dono de uma empresa e precisa demitir, não há escolha e deve mandar embora. Nisso, ele usou essa infeliz frase para dizer que o funcionário não tinha o que fazer e sim apenas aceitar, utilizando essa analogia”.

Pois bem, o chefe ou dono da empresa não tem escolha, precisa demitir os idosos que não se adaptam às novas tecnologias no trabalho. Então, não há margem, não há possibilidade, a forma civilizacional que escolhemos ou que, pelo menos, aceitamos, está dada como uma natural condenação. 

Dizer que a adaptação é o único que se pode fazer, é colocar por terra toda uma tradição educacional moderna que pôs a autonomia como meta e requisito na constituição do sujeito. 

Sua principal versão é a da utopia burguesa, liberal, aquela que prometeu a liberdade ao indivíduo em um mundo com igualdade de oportunidades, regras claras e ênfase no progresso. Tudo isso malogrou porque a promessa já era irrealizável em sua origem, e a máscara sequer precisa ser sustentada hoje, já que o cinismo acompanha o gozo pela indiferença. 

Se um velho já não se adapta às novas demandas tecnológicas, particulariza-se o fracasso, afinal é ele o culpado pela própria inadequação; se há que o demitir, que pena, mas talvez isso seja bom para ele, tirando-o da zona de conforto e devolva-lhe a motivação, dizem os expertos em administração e gerência.

Que em uma aula esse quadro seja pintado como dado e imutável, é desolador. Há algo de muito errado quando a Universidade equipara mercado à sociedade, colocando-o como denominador último da existência. Não há dúvidas de que o primeiro é parte da segunda, e que sob o modelo civilizador a que chamamos capitalismo – ainda mais nessa fase de hoje – aquele alcança dimensões estratosféricas. 

O problema, no entanto, repito, é a equiparação de uma coisa à outra e, por consequência, instrumentalizar a formação em nível superior para fomentar essa ordem. Um estudante pode pensar que, sendo um dos mais espertos de sua turma, será ele o patrão ou dono da empresa, ou que será o funcionário que, adaptado às novas tecnologias, suplantará o velho lento que se sente estrangeiro nos novos territórios em que a ergonomia, a flexibilidade e os fluxos de gestão são os parâmetros da língua e da cultura em geral. Isso talvez não aconteça assim, mas isso o universitário ainda não quer saber. 

A naturalização da violência é destruidora da condição humana em seu sentido enfático, a fantasia patriarcal de que o estupro pode ser algo bom para a vítima, bastando que ela saiba aproveitar o momento – que, no fundo, seria seu desejo – é sua manifesta eloquente. 

Tudo isso se associa à força autodestrutiva do capitalismo, um sistema que se mantém em pé porque a poucos convém, mas que segue firme e forte pela servidão de muitos. Seria bom que nós, no interior da Universidade, pensássemos um pouco melhor sobre essas coisas, principalmente quando estivermos muito convencidos de que estamos pensando e agindo de forma crítica. Afinal, nem sempre é o que acontece.

Sob o signo da morte, março de 2021.


Imagem de destaque: Freepik / gstudioimagen

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