A literatura não engole sapos

Ivane Laurete Perotti

Martelavam ideias nas ventas do menino. Dado a experimentá-las, já calculara o salto de um sapo-boi construindo uma alavanca. A construção em si não gerara problemas, a coisa toda só foi descoberta pela inusitada “proteção” criada para a cabeça do sapo, delicadamente chamada de “teta de papo”. Pois, de posse – indevida – de um soutien da mãe, ele recortou o bojo e o colou entre duas amarras que terminavam em nó. Ou quase isso:

– É um capacete duplo. Bem confiável para a “teta de papo”.

– Mas você não me pediu para usar o soutien.

Eu não usei, mamãe! Ele usou. E você tem tantos…

– São roupas íntimas, filho. E são minhas. Você deveria ter conversado comigo sobre isso.

Ele não se importa, mamãe. Garanto!

Os progenitores viviam com um pé na preocupação e outros na comédia. Os amigos diziam que o menino se daria muito bem na Educação Infantil quando a escola retornasse da pandemia. Era um alento imaginá-lo aprendendo a controlar os seus impulsos criadores.

– Eu faço experimentos, entendeu? Sou um cientista!

Na conta da colaboração que bate entre parentes interessados e amigos experientes, um amigo da família presenteou o cientista mirim com uma coleção de gibis. Guardados com gosto e prazer, reuniam uma geração de leituras que haviam desaparecido das prateleiras. 

– Isso daqui era para o meu filho, mas como eu acho que não vou…

– Você não vai casar, tio?

– Bom, casar eu vou, mas…

– Tá! Já entendi. Depois eu devolvo.

A coleção motivou discussões: entre observações sobre os gibis serem indicados a leitores mais velhos e a terrível influência dos faroestes para uma criança. Seriam adequados? Ele ainda não fora alfabetizado completamente. As imagens seriam excessivas? E a questão das armas? Isso poderia influenciá-lo. Seria outra dor de cabeça. Um perigo! O próprio menino decidiu a questão:

Sei bem o que é de ficção: tá colado. Entende? É de cola… Tá? Não gosto de armas. Eca!

– Você ainda não sabe ler, filho! Melhor se ficar com os livros…

– Só de figuras? Nãoooo! Eu aaaamooooo letras. Elas têm códigos. Estou decifrando tudinho.

– Essas histórias são… 

– Ficção, mãe. O Tex é a maior ficção! Eu quero ler mais.

Novamente a questão virou assunto de família. E, em menos de um mês, o menino recebeu considerável quantia de livros de todos os gêneros, tipos, gerações, formatos e densidades. Livros para crianças e livros de crianças para outra criança. Um pacote só. 

– Essa tal ficção é uma grande realidade! – era a voz do menino para os primos e primas na assistência acalorada diante de seu novo empreendimento:

– Agora, eu sou um cientista das letras. Conheço os códigos secretos dos livros. 

– … Hum?

– As letras, as letras são os códigos secretos, entendeu?

Os mais velhos torciam os olhos, mas gostavam do enfrentamento que o primo menor comandava. Vencia os adultos pelo cansaço e ganhava a “parada das experiências”.

– Já sou um cientista dos livros. Quando eu crescer, terei um laboratório só para…

Os pais, como de costume, tentaram explicar ao filho a diferença entre ciência e literatura de ficção. Mas o menino, como era de se esperar pela idade e pelas respectivas maturações, foi categórico:

– Eu sei o que é ciência, pai: a ciência pesquisa provas. Entendeu? E a ficção fabrica as provas. São muito diferentes. Mesmo que…

– O que, meu filho? – era a voz angustiada da mãe.

– Mesmo que alguns ainda façam as tal da… Da… Das falsas…

– Você quer dizer fake news?

– Isso! Isso daí. Elas são muiiiiito antigas. E é, é a… a contraciência… 

– De onde você tira isso, meu filho?

– Não tiro nada, mãe! Eu sou cientista, saca?

– Filho, você gosta de colorir, de fazer desenhos e… os desenhos, sabe?

– Dãaaa… claro que gosto mãe! São as cores do mundo! E eu…

– Já sei…

Muitas consultas psicológicas depois, a família se compromete a brincar mais com o filho tão precocemente interessado nas coisas do mundo (no mundo das coisas?). Mas antes de se liberarem da sessão, foram instados a responder sobre uma fala que o pequeno fizera na entrevista:

– Vocês têm muita discussão política em casa? – pergunta a terapeuta.

– Não… Somos pais bem normais… eu acho – o pai estranha a própria resposta.

– É… Conversamos abertamente sobre todos os assuntos.

– Bem… Talvez vocês devam observar as conversas sobre política e políticos. Explico: o filho de vocês decidiu-se por ser cientista político e pretende, assegurou-me, garantir-se a uma candidatura presidenciável assim que lhe for possível!

Risadas amarelas:

– Bom, ele já quis ser tantas…tantas coisas até agora. Isso irá passar, não é? – pergunta o pai.

– Me parece inofensivo! – completou a mãe.

– Certo! Talvez passe e não parece um problema, mas preciso que vocês saibam que ele já gravou todas as propostas de sua campanha.

Outras risadas.

– No celular? – pergunta o pai.

– Sim, no celular e está repassando o seu “discurso” para os amigos de vocês, coleguinhas e…

– O que lhe preocupa exatamente, doutora? – a mãe pergunta com ênfase.

– Ele… Ele está arrecadando livros de todos os tipos para criar uma infindável biblioteca mundial. E muitos estão respondendo positivamente.

Pela primeira vez, os pais riem aliviados! Ele estava usando bem o celular. E os sapos-boi não seriam incomodados tão cedo. 


Imagem de destaque: AnukEvo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *