A escola assistencialista: efeitos da pandemia na educação brasileira

Edilson da Silva Cruz

Muito se tem escrito e falado sobre os efeitos da COVID-19 na educação, discutindo-se o que será da escola pós-pandemia. No entanto, ainda é preciso voltar os olhos ao que tem ocorrido nas escolas durante o período pandêmico. O exemplo da Rede Municipal de Ensino da cidade de São Paulo (RME-SP), uma das maiores do país, pode ajudar e entender os desafios da crise sanitária na educação. 

Em março de 2020, as escolas municipais fecharam para aulas presenciais. Os professores entraram em recesso e, logo depois, em teletrabalho. Os estudantes tiveram acesso ao aplicativo Google Sala de Aula (GSA), que permite realizar atividades e obter devolutiva dos docentes. De início, não se exigiam aulas síncronas. Cada aluno recebeu um livro de atividades enviado pelos Correios. Aos professores coube a tarefa de fazer postagens diárias no GSA, com tarefas para que os alunos cumprissem a partir do conteúdo do livro. 

Os servidores que permaneceram em trabalho presencial (direção, funcionários técnicos) passaram a ocupar-se da relação com a comunidade. De início, para informar sobre a entrega do Cartão Merenda, política criada para mitigar os efeitos da pandemia sobre a segurança alimentar dos estudantes. No entanto, apenas algumas famílias previamente cadastradas em programas sociais receberam o cartão, com um valor em dinheiro para utilizar em supermercados e outros estabelecimentos. Em julho de 2020, as escolas receberam cestas básicas destinadas às mesmas famílias, cerca de 1/3 do total. 

Apenas em outubro de 2020 o Cartão Merenda foi universalizado para todos os alunos. Coincidentemente, às vésperas da eleição municipal. O interesse social da população mais vulnerável teve de esperar o avanço do calendário eleitoral para que o poder público tomasse uma atitude a fim de minimizar os efeitos da crise econômica e social. 

Estas ações revelam o predomínio de uma relação assistencialista entre poder público e população: ações de cunho paternalista por parte do Estado, focadas em “ajuda de curto alcance em termos de modificação da realidade social de seus beneficiários” (Milanezzi, Mishijima e Sarti, 2012, p. 7). Trata-se de atitude que “nega ao indivíduo seu papel de sujeito de direitos, capacitado a gerenciar os próprios problemas” (idem). 

Embora reconheçamos que cumpre à escola garantir condições materiais de permanência aos estudantes (LDB, artigo 3º, inciso VIII), não se trata de uma instituição assistencial, mas educativa. Ações assistenciais devem ser esporádicas e nunca assistencialistas. O Cartão Merenda, por exemplo, apesar de garantir autonomia aos usuários, que podem escolher onde e como utilizá-lo, ao ser universalizado apenas às vésperas da eleição, cedeu lugar a uma relação de dependência, cuja resposta esperada viria na urna. E não deu outra. 

Da mesma forma, o modelo pedagógico adotado na RME-SP, pautado no ensino remoto via GSA, acentuou um caráter assistencialista nas relações pedagógicas. Uma relação educador x educando que se restringe à enunciação de tarefas por parte do professor e seu cumprimento por parte do aluno, elide a dimensão dialógica em favor de um ensino verbalista. Na acepção de Paulo Freire (1977, p.80), 

As relações entre o educador verbalista, dissertador de um “conhecimento” memorizado e não buscado ou trabalhado duramente, e seus educandos, constitui uma espécie de assistencialismo educativo. Assistencialismo em que as palavras ocas são como as “dádivas”, características das formas assistencialistas no domínio do social. 

Em que pese o hercúleo esforço das educadoras e educadores municipais e suas estratégias para potencializar a dimensão crítica do ato educativo, mesmo no ensino remoto, o modelo oferecido pela SME ficou aquém do necessário para se garantir o mínimo padrão de qualidade social no processo educativo durante a pandemia. O assistencialismo, seja na dimensão material, com ações caritativas atreladas ao calendário eleitoral, seja na dimensão pedagógica, com o oferecimento de um modelo pedagógico que bloqueia o aprofundamento crítico e a construção da autonomia de educadores e educandos, tem um efeito político perverso, conforme Freire (1977, p. 80): 

Ambas as formas assistencialistas que no fundo se implicam – a material como a intelectual – impedem que os “assistidos” vejam, clara e criticamente, a realidade. Que a desvelem, que a desnudem, que a apreendam como está sendo. Impedem que os “assistidos” se vejam a si mesmos como “assistidos”. 

A quem interessa impedir o acesso a uma visão de mundo mais objetiva aos que sofrem as consequências da pandemia? Ora, cabe-nos como educadores o papel de problematizar essa realidade, a fim de avançar no compromisso com uma educação crítica, na sala de aula e fora dela, presencialmente ou de maneira remota. A educação pós-pandemia é um desafio que já se iniciou, pois trará problemas novos, ao lado dos de sempre, potencializados pelos de agora. Que não percamos a esperança nem caiamos no fatalismo. 

 

Para saber mais: 

FREIRE, P. Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 

MILANEZZI, J. B.; NISHIJIMA, M.; SARTI, F. M. Do assistencialismo à consolidação do Sistema Único de Assistência Social. Revista Informações FIPE. Fundação Instituto de Pesquisa Econômicas, n.380, maio2012, p. 7-18. Acesse aqui


Imagem de destaque: Daniel V

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