Pensar a Educação com o Animismo

Francisco Ângelo Coutinho
Geisieli Rita de Oliveira
Edgar Rodrigues Barbosa Neto

Animismo é uma daquelas palavras que devemos falar em voz baixa, pois corre-se o risco de recebermos olhares de desconfiança quanto à nossa sanidade mental ou sobre nossa adequação intelectual ao mundo contemporâneo. Muito dessa postura negativa em relação ao animismo pode ser atribuída ao antropólogo Edward Burnett Tylor (1832-1917), que desenvolveu o conceito em sua obra A Cultura Primitiva (1871). Segundo Tylor, o animismo seria uma forma de protorreligião cultivada por povos “primitivos”, para utilizar sua forma de falar, e que atribui vida e personalidade aos animais, vegetais e minerais. Daí em diante, confessar-se um animista é quase confessar um crime, pois equivaleria a declarar-se anacrônico e defensor de ideias ultrapassadas ou ingênuas.

No entanto, gostaríamos de exercitar um gesto de subversão e de nos alinharmos às tendências atuais de valorização do animismo, tomando uma posição em sua defesa. Mais propriamente, queremos argumentar que se trata de um conceito importante e legítimo para compreendermos muito do que ocorre em processos de ensino/aprendizagem e que normalmente ignoramos ou subscrevemos como modos ingênuos de falar. Nossa preocupação advém do fato de que preparamos as estudantes e os estudantes para falarem da estrutura do DNA, de buracos negros, de forças de Van der Waals e de toda sorte de coisas que estão distantes de suas experiências cotidianas, mas nos esquecemos de que nós necessitamos também exprimir aquilo que nos afeta em nossa relação mais imediata com o mundo.

Existe uma questão a mais que nos move. Vivemos em um tempo que se convencionou denominar de Antropoceno – uma nova época geológica cuja marca é a interferência humana no estrato geológico causada pela atividade humana sobre o ambiente global – que aponta para uma série de riscos e incertezas advindas do novo regime climático. Nesse sentido, vários autores e várias autoras têm nos alertado para a necessidade de uma transformação da educação que nos aproxime de novas formas de conhecer e de viver que nos possibilite uma relação mais consciente e adequada com a Terra em que vivemos. Nesse cenário, precisamos então encontrar os meios que nos possibilitem uma relação mais íntima com o mundo, no sentido de nos entendermos como partes do mundo e não como se ele fosse um pano de fundo inerte para o curso de nossas vidas.

Entre estes autores, podemos nos referir ao antropólogo, sociólogo e filósofo francês Bruno Latour. Este autor tem argumento que uma característica de nossa sociedade, a que ele denomina de Modernidade, operou um golpe de força que instituiu uma separação a priori entre natureza e cultura, sujeito e objeto, mente e corpo e outras mais. Orientados por essa concepção metafísica dualista, os Modernos puseram em movimento também uma separação entre os/as humanos(as), que seriam seres ativos e dotados de agência, e todos os demais seres, que seriam simplesmente responsivos às leis causais da natureza ou simplesmente inertes. No entanto, segundo Latour, os seres mais que humanos também agem e nos afetam. Para Latour, aprendizagem, por exemplo, não é uma atividade mental ou imaterial, mas a aquisição progressiva de um corpo que se torna coextensivo com os demais seres que afetam esse corpo. Portanto, estamos diante de uma posição monista que defende a impossibilidade de distinção entre mente e matéria e entre sujeito e objeto. Os seres mais que humanos, portanto, devem ser pensados como ativos e coparticipantes das ações e relações humanas.

Igualmente argumentando contra uma concepção mentalista e representacionalista dos processos de produção do conhecimento, encontramos a física e filósofa feminista Karen Barad. Em seu livro Meeting the universe halfway, Barad sustenta que conhecimento, pensamento, teorizações, observações e tudo aquilo que alinhamos como conhecimento ou produção do conhecimento sobre o mundo são práticas materiais de intra-ação dentro e como parte do mundo. Nesse sentido, práticas de conhecimento são engajamentos materiais específicos que reconfiguram o mundo. Ou seja, não conhecemos situados fora do mundo, mas como parte do mundo. Aqui estamos diante de uma ontologia relacional que abandona uma cisão entre sujeito e objeto e propõe a inseparabilidade ou o engajamento ontológico de agências em intra-ações. O termo intra-ação aqui é fundamental, pois significa a reconfiguração das entidades envolvidas.

Tanto Latour quanto Barad estão a argumentar que a separação entre o sujeito e os demais aspectos materiais da realidade são artifícios que não se sustentam quando analisados de modo mais próximo e abandona-se a metafísica dualista que tem orientado nossa relação com o mundo. Em ambos os casos, Latour e Barad nos fornecem ferramentas conceituais e analíticas para assumirmos uma atitude que considere seriamente a capacidade de agência dos demais seres do mundo. Aqui estamos explicitamente nos referindo a uma capacidade que árvores, átomos, buracos negros, anjos, discos voadores, conceitos científicos e toda sorte de seres têm de nos animar e afetar.

Porém, para continuarmos, requer-se ainda um apontamento sobre o que entendemos por animação e afetação. Para isso, recorremos ao filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995). Deleuze discorre que os corpos não se restringem aos corpos humanos e, de fato, podem tomar forma em praticamente qualquer coisa, como um animal, um corpo de sons, uma mente ou uma ideia; pode ser um corpus linguístico, um corpo social, uma coletividade. Uma conceituação tão ampla dos corpos permite uma reconfiguração radical do sujeito humano como uma configuração intra-ativa, nos termos de Barad, conforme visto, de entidades ou relações de força, em que se pensa que o eu se estende em um conjunto de signos em constante mudança, objetos, corpos, linguagens, discursos, emoções e assim por diante. Corpos são então interminavelmente entrelaçados com outros corpos humanos e não-humanos em uma rica sinfonia (ou talvez, às vezes, cacofonia) de encontros. Portanto, podemos pensar o animismo como um encontro afetivo que agencia humanos(as) e outros seres mais que humanos(as).

Ao tomarmos o animismo como uma possibilidade, em nossas pesquisas nos preocupamos em responder a repetidos apelos à diversidade ontológica e, mais significativamente, fazer uso de abordagens de pesquisa que apoiem o reconhecimento explícito de contribuintes não-humanos para a formação do conhecimento. Há muito que pode ser dito aqui, mas por uma questão de brevidade vamos destacar apenas um exemplo, que faz parte de nossas pesquisas.

Em uma escola de educação básica na região oeste de Belo Horizonte, acontece uma prática de ensino nomeada “Fazendo os tambores falarem” que tem  demonstrado uma “gramática da animacidade” que não é uma mera conversa de conto de fadas entre humanos e outros seres, mas uma interação na qual tambores “falam” para o humano quando este se coloca diante dele e pode manuseá-lo;  neste caso, transformando palavras em numerais, que em seguida se transformam em batidas e sons nos tambores. Em suma, o tambor fala com as/os estudantes ao mesmo tempo que eles/elas falam com os tambores, recriando as práticas de telecomunicações africanas, conforme declaram os/as próprios estudantes:

“Estamos ligados” (João, 15 anos)

“Quando peguei a baqueta senti que ele me falava sobre amor, por isso escolhi essa palavra para fazer o toque” (Fernanda 48 anos, diretora de escola)

“Eu sinto liberdade” (Marcelli, 15 anos)

“Eu consigo traduzir o que estou sentindo, é como se conversasse, mas parece loucura dizer isso, mas quando eu bato no tambor, ele também comunica comigo, a palavra raiva, eu fiz ele com batidas mais forte, porque raiva é forte em min, estava sentindo isso na hora, mas ainda é a contagem 1,2…1,2,3” ( Wiverton, 18 anos) 

Os tambores falarem é uma prática situada, que tem demonstrado como dar corpo e substância aos afetos do mundo que passam por nós. O que expressam em toques, números e batidas não é elas/eles mesmas/mesmos, mas um agenciamento coletivo de enunciação, que é sentido através do corpo e que cria atritos entre as sensações e as potencialidades. O que os tambores falam não vem de uma enunciação individual. Sempre vem de um agenciamento coletivo de enunciação. A questão é sempre quem e nunca o quê. 

Longe de ser uma questão de considerações abstratas, trata-se de um campo de batalha na fronteira da modernidade colonial e, no contexto da política e da estética contemporâneas, diz respeito à questão urgente da transformação e negociação das ontologias, onde reivindicações de realidade e ordenamento do mundo social estão em jogo. Na fissura que emerge dos ensinamentos dos tambores as/os estudantes tornam-se híbridos estudante-baqueta-tambor, e tem nos demonstrando que se pode igualmente argumentar que, no mínimo, tais híbridos são suficientemente animistas para avaliar a dinâmica e a eficácia de novas ontologias na educação.

Sobre os(as) autores(as)
Francisco Coutinho é Graduado em ciências biológicas (UFMG), mestre em filosofia (UFMG) e doutor em Educação (UFMG). Professor da Faculdade de Educação da UFMG, onde atua na graduação e na pós-graduação. Líder do Grupo Cogitamus – Educação e Humanidades Científicas.

Geisieli Oliveira é graduada em ciências Biológicas (UEMG), mestre em educação tecnológica (CEFET-MG), doutoranda em educação em ciências (FAE-UFMG), coordenadora executiva do projeto Afrociências (CNPQ- Programa ciências na escola).

Edgar Neto é graduado em História pela Universidade Federal de Pelotas, Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Doutor em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Nacional (UFRJ). É Professor de Antropologia do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação (DECAE/FaE) e Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (FAFICH/UFMG).


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