Os redemoinhos dos cinemas negros e a educação – conversa com Fabiana Maria

Marco Aurélio Correa

Fabiana Maria é mãe, professora, escritora, realizadora audiovisual e cineclubista. Atua como professora da rede municipal de Olinda e em paralelo a esse trabalho coordena o Cineclube Bamako. Dedicada, cuidadosa e encantada, Fabiana vive os cotidianos escolares proporcionando uma outra educação para crianças, majoritariamente negras, seja com a literatura ou o audiovisual, acreditando em suas vivências para afetar suas realidades. Em conversa com a educadora pude trocar com ela sobre suas experiências com a educação e o audiovisual. 

Marco Aurélio: A início queria te perguntar como foi sua relação com o cinema na infância. O que te levou a sentir esse interesse e força para trabalhar com o cinema hoje?

Fabiana: Veja, eu sou de família paupérrima, então não conheci cinema na minha infância, falando de sala de cinema com aquela tela grande. Era um local onde eu não sentia que meu corpo pertenceria. É difícil dizer isso, mas tem muitas famílias periféricas ainda hoje que não têm acesso a uma sala de cinema. A primeira vez que eu fui ao cinema foi pra assistir Titanic em um cinema de rua aqui em Recife, no cinema São Luís que é um cinema muito famoso, um dos mais antigos que nós temos aqui em Pernambuco. É patrimônio já. Eu tinha uns 18, 19 anos. Eu assistia televisão pela janela da casa das pessoas que tinham uma em casa. 

Muito nova fui morar com uma tia que tinha uma condição financeira melhor, e na casa dela tinha tv. Eu não saia da frente da tv. Sempre gostei de dançar! Então minha primeira frustração na vida, acho que foi minha percepção do quanto eu sou negra, foi com a Xuxa. Eu sabia as coreografias das paquitas e queria ser uma. O povo dizia que eu nunca ia ser uma paquita e eu não entendia o porquê. Esses filmes, tanto na tv como no cinema, não refletiam a minha realidade. São fantasias colocadas ali. 

Mais velha com a vida organizada comecei a procurar referenciais que me representassem. É quando começo a frequentar muito aqui o cinema da fundação que exibia filmes fora da grade oficial. Aquele cinema de arte. Com a minha prática na sala de aula eu ficava pensando como levar referências positivas no cinema pros meus alunos. Eu tinha uma inquietação gritando aqui, mas não sabia o que era. Eu queria trazer tecnologia para escola, novas ferramentas, sair daquela aula só quadro e giz. Eu levava dança, fazia coreografia, fazia um cado de coisa com as crianças. Assim fiz uma especialização em mídias e comecei a pensar em cinema e educação. 

Marcos Aurélio: Como se deu a fundação do Cineclube Bamako? Me conte um pouco do seu trabalho e suas funções nele.

Fabiana: Lá em 2012 quando estava terminando a minha especialização, já no processo de pesquisa da monografia, conversei com o Gabriel Muniz, que estava num processo parecido na sua faculdade de cinema, e ele tinha a ideia de fazer um cineclube no trabalho de conclusão do curso. Logo eu disse: “oxi, quero participar!” E a gente foi e fez a primeira temporada do cineclube no museu da Abolição no bairro Madalena em Recife. Ele é um museu voltado para fazer exposições para a população negra. Eu fiquei com a coordenação pedagógica do cineclube. Muita gente boa passou por lá, inicialmente eu era a única menina no cineclube, hoje somos todas mulheres e Gabriel o único menino. Fizemos uma temporada na Aliança Francesa, porque o cineclube tem o nome Bamako, a capital do Mali. Nós bebemos muito nas produções de África, e muitos países de África falam a língua francesa. Então a gente traz a ideia dessa diáspora negra mesmo, de trabalhar sobre a questão negra no audiovisual. Depois nós fomos pros terreiros e nos consolidamos como cineclube itinerante. Então em cada temporada a gente ocupa um lugar diferente. Fizemos também em escolas, num projeto que aprovamos: Mais Cultura na Escola ali em 2003. Nesse momento conseguimos de fato ter um pensamento pedagógico de como utilizar filmes em sala de aula a partir desse projeto. Então o projeto previa formação pros professores aprenderem a utilizar a ferramenta de produção de audiovisual, roteiro, técnica de filmagem. Pros alunos a formação era oficinas eles produziam o que ia se transformar em audiovisual. Então ensinamos técnicas como o stop motion. Eles começaram a fazer bonequinho, panelinha de barro e a gente animava. Fizemos em todos nossos momentos itinerantes também sessões de filmes infantis pensando na questão da diáspora negra e formação de identidade para essas crianças.

Marco Aurélio: No seu filme Cabelos de redemoinhos (2019) percebo que você tem um movimento de juntar a questão da literatura com o cinema. Como foi o processo de fazer o Cabelos de redemoinhos dentro dessa perspectiva?

Fabiana: Sempre li muito, quando mais nova não tive acesso, dizendo a grosso modo, a uma literatura de qualidade. Como te falei, vim de uma família muito pobre e os livros que tínhamos acesso eram aqueles romances bem piegas. A primeira coisa que li que considero um livro mesmo foi com quinze anos o “Eu Cristiane F: 13 anos drogada e prostituída”. Imagina eu com aquela idade lendo isso, não sei nem como adquiri aquele livro. Mas ele foi o primeiro que peguei e li mesmo. Então a leitura entra na minha vida muito prazerosamente. E daí começo a escrever prazerosamente também: eu anoto, escrevo,  fico aqui divagando. Poesia, alguma coisa ou outra, mas nunca ousei colocar pra fora, é muito pra dentro. Tanto é que já me desfiz, joguei fora alguns cadernos de anotação, porque em relação de auto estima mesmo, você acha que o que você faz não tem valia. Então, a escrita está muito comigo e eu trabalho com os alunos de 4º e 5º ano muito a questão da leitura e da escrita. Então os projetos que eu coloco cinema e literatura são projetos para desenvolver neles uma escrita criativa. O legal de escrever é você escrever o que lhe motiva, o que lhe encanta e tem significado. 

Então o “Cabelo de redemoinhos” surgiu a partir do manual “Como cuidar do seu tointoin”, que foi um dos projetos lá de audiovisual que a gente tinha feito no Mais Cultura na Escola. E ele ficou engavetado pela falta de verba da prefeitura. Assim ele nasceu um ano depois, foi quando a gente tentou arrecadar verbas para fazer o livro, foi quando a gente fez aquele teaser. Só que foi um ano muito difícil pra mim e a gente não conseguiu continuar dando continuidade pra sair o livro de fato. Inclusive é minha prioridade esse ano.

Em seguida em outra escola que eu estava fazendo sessão do Bamako com o documentário Parece comigo (2016) que fala sobre a falta de bonecas negras no mercado né. Pelo Bamako recebemos o Kbela (2015), pensei passar também, mas ele é muito pesado para o público infantil. Fiquei com o Parece Comigo mesmo e usei o clipe de Larissa Luz Bonecas pretas (2016), que é muito bom! É um clipe né, um videoclipe. Comecei a montar com uma turma de 5º ano uma história chamada “Tointoin”, que é um outro livro que pretendo fazer mais pra frente. A história fala de uma boneca num ambiente como se fosse uma aldeia, só que com a gente a aldeia era a própria escola. Então fiz junto com os alunos a gravação de voz dos personagens. No final da história chega o momento onde iria entregar a boneca negra pra menina, que foi uma criação deles mesmo, eles calados olham assim pra mim e dizem que o final está muito ruim. Perguntei para eles o motivo e eles me disseram que todas as crianças da aldeia tinham que ganhar uma boneca negra. Eu disse: “é, realmente, vocês têm razão”. A criança sempre tem razão. Aí tive que ir lá e mudar a história para que todas as crianças negras ganhassem a boneca na aldeia. Disso fizemos uma peça de teatro e um monte de outras coisas. A literatura e o audiovisual tem dessas coisas.

Marco Aurélio: Um dos objetivos da minha pesquisa de dissertação do mestrado é tentar encontrar como os professores e cineastas podem trabalhar como griots para suas comunidades. Queria saber o que você pensa, sendo tanto professora e cineasta, que é preciso para estes dois conseguirem se tornar griots?

Fabiana: Contar história todo mundo conta, mas uma história pra emocionar mesmo ela precisa ser verdadeira. Precisa ter sentimento. Então os filmes, exibidos por esse griot, tem que trazer verdade e sentimentos pra esses alunos. Os livros lidos também precisam trazer realidade e sentimentos de situações vividas. Não adianta chegar pros meus alunos dos primeiros anos da educação básica e trazer livros e filmes sobre a guerra fria. Eles não vão entrar no contexto. Se quero proporcionar essa mudança preciso criar esse contexto com suas realidades. Eu acho que cineastas negros, que querem fazer com que crianças, sejam elas negras ou brancas, se apaixonem pelo audiovisual, é preciso de um filme que as emocione. Que façam eles prestarem atenção e que retrate a realidade deles. Por isso que o cinema emociona. O cinema emociona e tem uma gama de filmes diferentes, e tem público pra todo tipo de cinema, porque a gente vai pro filme que nos identifica. Tem que ter identificação. A grande sacada pra ser um grande griot é essa. 

Claro que o griot que a gente fala hoje é um griot muito distante de África, muito distante. Porque o griot de África são pessoas mais velhas responsáveis pelo conhecimento, ele senta pra contar conhecimento para as crianças. É o guardador das histórias por viver uma cultura oral. E o griot daqui sai desse contexto africano de ancestralidade e entra no contexto de contação de história. Então pra ser um griot no Brasil, principalmente em escola pública, e um griot de audiovisual, você tem que compreender o seu público, e saber que filme você vai passar, como você vai passar esse filme pensando na dinâmica do trabalho. Essa é a verdade, é você estar ali pro audiovisual e passar ele com verdade. 

Então por exemplo, eu que trabalho com o público de periferia e já conheço ele, vou precisar levar filmes que consigam tocar nesse público. Filmes que consigam apaixoná-los pelo audiovisual. Se a gente pega um filme que retrate a vivência dessas comunidades das periferias e coloca num bairro rico, por exemplo, esse filme vai causar estranheza. Ele vai se tornar um tipo de estudo, vai causar espanto, porque não reflete a realidade deles. Quando a gente traz um filme que reflete a realidade das crianças e elas se identificam, tem grandes chances que eles queriam começar a agir tal qual o filme que se tornou referência. Acho que ser griot é isso, é você ser a referência na contação de história, e criar identificação com essa história. O audiovisual tem isso. Em 2019 eu passei o Cabelo de redemoinhos nas turmas menores que trabalho e foi muito interessante. O filme estava passando e as crianças assistindo, assistindo, assistindo. E ele é curtinho, é um curta metragem. Quando chegou na metade do filme, quando uma entrevistada fala da beleza do cabelo dela, uma menina de cabelo preso na hora ela pega o pompom, tira, solta e balança o cabelo! Eu vi balanço e na hora uma professora me cutucou e pra mostrar ela soltando o cabelo e eu fiquei, tipo, “eita”! Porque tocou nela, entendeu? Acho que é esse tocar, essa verdade que temos que ir atrás. E não foi só ela nessa turma, uma criança de outra turma também de cabelo preso e soltou e ficou com o cabelo solto o dia todo! Então, pra ser griot com o audiovisual é preciso encantar. Eu sou do encantamento, gosto do encantamento. Acho que quando encanta a gente chega mais rápido. 

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