Os militares e a Educação  – Parte I

Alexandre Fernandez Vaz

Eu era menino quando uma tia querida me deu de presente uma camiseta adquirida na América Central, em um país, explicou-me, onde não havia forças armadas. Sobre o algodão branco e confortável, vinha estampado um desenho e os dizeres “Costa Rica: paz y trabajo”. Era bonito defender essa ideia, que encontrava amparo no pacifismo da contracultura e na crítica aos militares latino-americanos, especialistas em golpes de estado e suas decorrências: cancelamento das liberdades individuais, censura, inflação, sequestros, torturas, mortes, desaparecimentos etc. No entanto, minha geração também se empolgava com a força militar dos sandinistas na Nicarágua, assim como, anos antes, amigos mais velhos haviam se fascinado pelo militarismo da revolução cubana. Considerávamos legítimo o uso da força para a derrubada de regimes ditatoriais.

Ainda havia quem imaginasse, nos anos 1980, que uma revolução pelas armas era possível e desejável no Brasil. Essa fantasia já não está presente, e quando vemos Cuba e Nicarágua longe de patamares democráticos mínimos, parece que alguma coisa falhou por lá, apesar da legítima rebeldia contra a opressão e a tirania. Se parte da esquerda brasileira fecha os olhos para as graves violações da democracia e dos direitos humanos que são vistas em forças que já se disseram – ou se dizem – revolucionárias, isso mostra o rebaixamento político e a falta de honestidade intelectual que vivemos.

Os mesmos anos 1980 eram tempos em que os militares brasileiros não gozavam de muito apreço por parte da população. A ditadura que irrompera em 1964 estava no fim, o movimento era de amarga volta aos quarteis, ainda que alguns deles insistissem em permanecer na política, enquanto outros, menos numerosos, apelassem para o terrorismo. Exemplar foi o atentado ao Centro de Convenções Riocentro, Rio de Janeiro, onde se realizava um grande espetáculo em homenagem ao dia do trabalhador, em 30 de abril de 1981. Naquela noite, uma bomba estourou antes do previsto no colo de um sargento, levando-o à morte dentro do carro em que viajava no banco do carona, enquanto outra foi atirada na direção de uma central de energia, sem sucesso. Houvesse tido êxito a “missão”, cujo objetivo era incriminar grupos de esquerda, o pânico gerado poderia ter levado à morte centenas, talvez milhares de pessoas.

O atentado não era regra, já que o clima de ameaça constante vinha se dissipando desde a Abertura iniciada por Ernesto Geisel na década anterior. “Lenta, gradual e segura”, nas palavras do mentor ditatorial de então, Golbery do Couto e Silva, o processo foi controlado pelos aparelhos militares, consolidando-se, mal ou bem, na Carta Constitucional de 1988. Nove anos antes, a Lei da Anistia permitiu a volta dos exilados e a soltura dos presos políticos, ao mesmo tempo em que deixou impune os crimes perpetrados pelo aparato repressivo do regime. No governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) as coisas se aceleraram. Nele foi criada uma Comissão de Mortos e Desaparecidos e os antigos ministérios militares (sim, havia um para cada Arma) foram substituídos pelo da Defesa, sob a direção de um civil, o que se manteve nos governos de Lula (2003-2010) e de Dilma (2011-2016). Parecia que as coisas entravam nos eixos. Michel Temer, o vice que assumiu o cargo (2016-2018) depois do golpe parlamentar contra a presidenta, quebrou essa tradição, nomeando um militar da reserva para o cargo.

Sob Jair Bolsonaro, militares ingressaram no governo de forma orgânica e uma parte da população considera adequada essa presença, manifestando-se aqui e ali, inclusive, pela volta da ditadura. Afora o autoritarismo latente e manifesto que vige entre nós, há um sentimento mal resolvido com as Forças Armadas, que se traduz na consideração de que seriam elas guardiãs da honestidade da disciplina e da responsabilidade, como se os fardados fossem gente moralmente superior aos civis. Isso se vê na insistência do governo brasileiro em destacar a presença do Exército como controlador da lisura do processo de votação e apuração dos votos nas próximas eleições gerais. As Forças já são, desde 2019, uma das entidades fiscalizadoras das eleições, com cuja logística, aliás, vêm colaborando há tempos. Militares compõem uma carreira de Estado e podem contribuir com uma operação complexa como é a eleitoral; então, que o façam, cumprindo a função de trabalhadores públicos, não de Poder Moderador. Seremos gratos.

Completando o quadro, parece que temos novamente dispositivos pedagógicos voltados à admiração pelas Forças Armadas, ecoando o que acontecia na minha infância. Segundo texto recente de Luigi Mazza para a revista Piauí, a TV Brasil vem fazendo odes à Marinha (com programa Faróis do Brasil) e ao Exército (com o correlato Fortes do Brasil), o que faz lembrar as propagandas de TV, os álbuns de figurinhas, as visitas escolares aos quartéis, as homenagens às Armas nos dias em que são celebradas no calendário anual de comemorações etc., práticas a que fui submetido no final da ditadura. A isso se somam, claro, os elogios perenes que o Presidente da República faz ao “seu” Exército e aos ditadores que nos aterrorizaram durante mais de vinte anos.

Um país democrático precisa de Forças Armadas regulares, bem treinadas e que respeitem a população, não a faça teme-las. Elas são um dos pilares de construção da soberania. Que exerçam, portanto, suas funções de maneira ordinária, longe da política, já que esta não pode ser feita com armas na mão ou sob a ameaça de empunhá-las. Instrumentalizar o aparato militar é desmoralizá-lo em sua potência e aproximá-lo de práticas que não podemos aceitar. Fecho com alguém insuspeito de ser comunista, o General Otávio Santana do Rêgo Barros, que foi porta-voz da Presidência da República entre janeiro de 2019 e agosto de 2020. Prefiro uma posição que afaste ainda mais os militares do governo, mas respeito sua posição: “A interação entre representantes das Forças Armadas e do governo é esperada e saudável, mas seu excesso é desgastante para a corporação e impensável para a sociedade que busca maturidade litúrgica das autoridades em um Estado de pleno direito”.

Ilha de Santa Catarina, maio de 2022.

 

Para saber mais
GUERRA, Ruy. Os Fuzis (filme), 1964.

MAZZA, Luigi. “Irruuuu!!” Como Bolsonaro transformou a TV Brasil em sua emissora. Revista Piauí. São Paulo, Maio/2022. Acesse aqui.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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