Os intelectuais e a normalidade democrática

Luciano Mendes de Faria Filho – UFMG
Adir da Luz Almeida – UERJ

Depois de 6 anos de contínua ruptura do Estado Democrático de Direito temos a oportunidade de, a partir do dia 01 de janeiro, começarmos a voltar à normalidade democrática. Estamos diante da reconstrução do país, e é neste cenário, em que estão  dispostos os diferentes agentes políticos em disputa pelos sentido das coisas, que se torna importante debater qual será o lugar da intelectualidade.

No Brasil, como em boa parte do mundo, salvo os “intelectuais midiáticos”, ou seja, aqueles e aquelas que foram entronizados nessa posição pelos conglomerados midiáticos transnacionais aos quais servem. A grande maioria daqueles e daquelas que são reconhecidos ou que se reconhecem como intelectuais são professores(as) ou pesquisadores(as) de instituições universitárias, de  centros acadêmicos ou pertencentes a grupos de pesquisa, entre outras modalidades de inserção. Um número significativo destes, como sabemos, devido às formas contemporâneas de organização do trabalho universitário e dos modos de consagração acadêmicos, se reconhecem e agem muito mais como especialistas em suas respectivas áreas do que como intelectuais interessados no debate sobre interesses públicos  mais amplos.

O “especialista” tende a refugiar-se no lugar do “é este conhecimento que domino”. A figura do especialista no “quase tudo” midiático, ou no “quase nada” acadêmico,  mas formatadores de corpos e mentes por meio, justamente, das políticas, às vezes, nos faz esquecer no passado recente as perseguições da Ditadura ou do bolsonarismo aos cientistas. Cassações, perseguições, exílio, nenhum lugar livre de intervenção e controle foram as marcas da primeira que, felizmente, conseguimos evitar que neste segundo se transformasse em uma ação em grande escala.

É importante recordar que nas últimas décadas boa parte destes especialistas se colocou a serviço do Estado para, nele e a partir dele, operacionalizar políticas públicas de interesse social. No entanto, nunca é demais lembrar, também, que desse deslocamento dos especialistas das universidades para as estruturas de Estado resultou não apenas uma maior dificuldade do estabelecimento de críticas às políticas públicas como também uma desobrigação do Estado em montar uma burocracia pública capaz de coordenar e operacionalizar estas mesmas políticas públicas de modo continuado.

Ainda que os especialistas não raramente advoguem uma falsa neutralidade técnica ou axiomática em suas intervenções, aos intelectuais, tomados individualmente ou como grupo, não é aceitável que o façam. Ao aderirem a este ou aquele projeto,  não há como resguardar desta adesão o caráter político. A velha afirmação “faço ciência e não política”, herança talvez de uma concepção positivista de ciência,  onde era fundamental o reconhecimento da neutralidade da “prática científica” não mais se sustenta.

A cessação ou, no mínimo, a diminuição de uma postura crítica em relação ao próprio Estado e aos agentes políticos que o disputam – partidos políticos, grupos empresariais etc. – observados ao longo dos governos Lula e Dilma se repetirão neste momento em que retornamos à normalidade democrática? Qual o papel, ou a função, dos intelectuais neste novo cenário? Ou, dito de outra forma, há espaço para a ação intelectual crítica no processo de reconstrução democrática do país?

Não havendo mais condições à existência de intelectuais que dominam com profundidade as várias áreas do saber, a ação intelectual no espaço público dependerá diretamente da ação dos especialistas. Entendemos, por isso mesmo, que é preciso romper com a perspectiva de que não haveria alternativa à dicotomia especialista versus intelectuais. Há que se entender que os especialistas podem, sim, se constituir em intelectuais à medida em que, a partir ou levando em conta suas especialidades, compareçam ao debate público em defesa de causas que não necessariamente são atreladas, diretamente, à sua área de saber.

Os especialistas têm a função intelectual de palavrear publicamente os benefícios ou os riscos, para a população, das ações públicas e privadas estabelecidas em suas respectivas áreas; mas também é necessário que venham a público participar dos debates sobre os rumos do mundo. Há possibilidade de ligá-lo à dimensão da existência coletiva, numa perspectiva de transformação das relações de dominação e exclusão, próprias da sociedade contemporânea. Tal ligação que parece, num primeiro momento, óbvia, nem sempre o é.

Talvez, uma das “linhas de fuga” em situação adversa esteja em produzir-se uma outra ação política, um novo “intelectual” que, recusando-se a ser apenas um “especialista”, aponte para territórios singulares, novos, criativos, onde se consiga apontar para as armadilhas do instituído, para a ocultação e a naturalização das práticas e modelos dominantes.

Se é isso que se pode esperar dos intelectuais, não se pode esperar que se calem ante a composições políticas esdrúxulas que, a pretexto da governabilidade ou da transição, impedem a possibilidade do novo por, justamente, mantê-lo majoritariamente atrelado aos grupos que conduziram, no passado recente, à situação de ruptura democrática que vivemos. Do mesmo modo, não se pode culpá-lo por palavrear e dar nome ao mal-estar que as opções deste ou daquele governo ou grupo político trazem no e para o espaço público e para a maioria da população, ainda que tais opções sejam tomadas em nome da governabilidade ou da estabilidade política. Os intelectuais, por isso mesmo, não vieram para trazer paz e tranquilidade ou justificativas plausíveis para atos injustificados. Na verdade, só cumprem alguma função social e política relevante se incomodam, se, lá onde ninguém quer enxergar, eles insistem em mostrar que o rei está  nu.


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