Os dois Brasis de José Américo de Almeida no romance “A bagaceira”

Carlos André Martins Lopes 

José Américo de Almeida publicou seu romance capital, “A bagaceira”, em 1928. O enredo se desenvolve no Brejo, no engenho Marzagão, propriedade de Dagoberto Marçau. O foco narrativo é na terceira pessoa, com um narrador onisciente e intruso, que introduz comentários, julga as ações dos personagens e projeta visões de mundo que podemos encontrar no contexto de produção da obra.

Consideramos que, em grande medida, o romance encena os dramas vivenciados pelo país naquela época. Dois personagens são bastante significativos para pensar as relações sociais e de produção do Brasil dos anos 20. São eles Dagoberto Marçau, dono do engenho Marzagão, e Lúcio, filho de Dagoberto. Lúcio é um jovem bacharel, formado em Direito. Podemos afirmar que esses personagens representam duas ideias de Brasil. Por um lado, um Brasil atrasado e violento; por outro, um país desejando mudanças, intentando uma modernização social, econômica, cultural e mental.

O senhor de engenho, Dagoberto Marçau, representa uma velha oligarquia rural, cujo poder advém da posse de grandes extensões de terra. A narrativa de “A bagaceira” sugere que as relações de trabalho no interior do engenho são extremamente precárias. O camponês, explorado pelo dono da terra, trabalha das primeiras até as últimas claridades do dia. Recebe, como pagamento, apenas a comida, e mesmo assim em mínima quantidade. Vive em moradias precárias e sob o risco permanente de serem expulsos a qualquer momento. 

Em “A bagaceira”, Xiname, um trabalhador do engenho de Dagoberto Marçau, foi expulso da propriedade aos gritos. Suplicando para que pudesse levar com ele pelo menos o aipim que havia plantado, escuta do ex-patrão que “o que está na terra é da terra”. Em outra cena, o mesmo Xiname, ao entrar no Marzagão para tentar colher seu próprio aipim, é descoberto. Tendo sido preso, sob as ordens de Dagoberto, este ordena que o “traseiro” do “caboclo” seja lambuzado com mel e que seja sentado num formigueiro. Violência semelhante sofreu Latomia, outro trabalhador do engenho, após dar a notícia de que um cavalo havia morrido enforcado. Após ser chamado de “cabra de peia”, tem início a cena de espancamento do trabalhador, o qual apenas baixa a cabeça, tentando, o quanto pode, livrá-la dos violentos golpes desferidos pelo patrão.

O Brasil representado por Marçau é ainda o país no qual predominam as relações fundamentadas nos interesses particularistas. País do aparelhamento das instituições de Estado para que se tornem instrumentos de perseguição e/ou de beneficiamento dos amigos. O romance traz uma cena que narra uma violenta invasão ao engenho pela polícia. O dono do Marzagão explica que tal invasão ocorrera por ele, Dagoberto, estar “desavindo” com o chefe político local. Depois de narrar a violência contra os moradores, o narrador afirma, inclusive, que havia redutos invioláveis de impunidade, quando os criminosos eram amigos do chefe político, ao passo em que os oposicionistas sofriam todo o tipo de arbitrariedades. 

O senhor de engenho representa um Brasil velho, oligárquico, violento, atrasado. Um Brasil dos homens poderosos e violentos. Dos homens que revolvem conflitos por meio da pancadaria, pela força das armas. Brasil dos homens que não aceitam a autoridade do Estado. Dagoberto é o Brasil dos resquícios de escravidão, dos homens que acreditam possuir o corpo, a vontade, os desejos dos homens sem posse, dos homens sem terra. O dono do Marzagão representa o Brasil da ausência de leis que constranjam e coajam homens ricos. O senhor de engenho é o representante de um país que não se modernizou no plano mental e cultural. Dagoberto é um símbolo da incapacidade de modernização econômica e das relações de trabalho.

Lúcio, por outro lado, pode ser percebido como uma – mesmo que precária, pálida e tímida – nova ideia de Brasil. O bacharel é crítico contumaz das ações de Dagoberto. Não aceita a forma violenta como trata os trabalhadores do engenho. O narrador sugere que o jovem é cortês, delicado e civilizado no trato com as pessoas. Lúcio gosta de ler e dá muito valor ao conhecimento. Vê pelo viés da negatividade a falta de modernização do engenho e das relações sociais. O filho de Dagoberto pode ser percebido como um representante dos jovens insatisfeitos com os rumos que tomara a república e que, na década de 1920, intensificavam as críticas à velha e corrupta política lastreada em obscuros e tenebrosos arranjos.

Merece destaque o contexto no qual a obra foi publicada. A década de 1920 foi marcada por importantes acontecimentos no campo da política, das artes, da cultura e da educação no Brasil. No campo educacional, o movimento escolanovista, presente no país desde finais do século XIX, preconizava um novo modelo de educação no qual o próprio papel do professor fosse redimensionado. Um modelo no qual o docente deveria limitar-se a criar as condições para que o estudante pudesse aprender. Enfatizava-se a necessidade de garantir o aprendizado por meio da experiência, e recomendava-se que os currículos contivessem os conteúdos com aplicação prática no mundo real. Enquanto isso, o movimento modernista de São Paulo, difundido para o restante do país, envolveu a intelectualidade brasileira em torno das propostas do movimento, que visavam uma completa reformulação do fazer artístico/literário. No plano político, as velhas oligarquias políticas/rurais tremiam, face às críticas contundentes originárias de vários setores sociais e, inclusive, dos setores artístico/literários. 


Imagem de destaque: Wikimedia Commons

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *