Tela quebrada, aparelho já gasto, provavelmente, havia estado entre outras tantas mãos, mas, indubitavelmente, nada disso importava a Pando. Na roda de conversa com outras crianças, ele apresentou seu celular com o orgulho de quem porta algo precioso. Sua amiga Lila, logo adiantou o motivo: “ele fez um diário no seu celular”.
Pando é uma criança de 9 anos, mora na região sudoeste de Belo Horizonte e estuda em uma escola pública municipal. Ao lado de outras crianças, participou de uma pesquisa realizada entre os meses de novembro de 2020 e janeiro de 2021, cujo objetivo foi compreender, a partir dos pontos de vista das crianças, as suas experiências vividas no contexto pandêmico provocado pela COVID-19. Durante as oficinas, Pando desenhou seu autorretrato e se descreveu como “engraçado, obscuro, brincalhão, bravo e inteligente”, contou-nos sobre seus relacionamentos com os amigos, vizinhos e parentes, suas teorias, seus medos, suas inseguranças e alegrias. Disse-nos que, num dado momento, sentiu a vontade de escrever sobre o que estava acontecendo no ano de 2020. Desse despertar, no contexto de isolamento, surgiu a ideia de escrever um diário no seu celular.
O diário é o gênero das confissões, da bioescrita, cuja textualidade é tecida com palavras e imagens que expressam o vivido, isto é, as minudências e as particularidades do cotidiano que somente o escritor alcança. Nessa relação intensa com a escrita, o autor tem como interlocutor o seu próprio diário, com o qual estabelece uma relação de confiança, de sensibilidade (COSTA, 2012). Nessa experiência de escrita, autor e leitor se fundem em um único ser. O tempo da narrativa não é necessariamente o tempo cronológico, apesar da palavra diário indicar a passagem sequencial de dias, pois o tempo da experiência vivida é complexo. Nesse sentido, passado, presente e futuro interagem mutuamente, reafirmam-se e reformam-se iterativamente (KOHAN, 2019).
Segundo Costa (2012), o diário é um dos gêneros escritos mais antigos, remonta à antiguidade suméria. Tornou-se um fenômeno cultural e histórico importante ao cumprir várias funções, como a de tornar público registros sociais de controles e observações das esferas da vida comum. A partir do romantismo, o diário íntimo ou “o livro do eu” popularizou-se em muitas sociedades. As crianças também apreciam e se identificam com esse gênero. Obras literárias atuais como o Diário de um Banana de Jeff Kinney e Diário de Pilar, de Flávia Lins e Silva e Joanna Penna fazem grande sucesso entre elas.
Ao escrever o seu próprio diário, Pando produz uma escrita solta, livre, marcada por passagens que falam de um tempo de espera, de incerteza, um tempo lânguido, aborrecido, o tempo do isolamento, “do nada para fazer”. A narrativa também expressa suas preocupações com os acontecimentos mundiais de ordem geopolítica e para compreendê-los, elabora teorias capazes de explicar a desordem percebida. As brincadeiras e os encontros com os primos e amigos enchem seu cotidiano de suspiros e surpresas. As datas separam as passagens, sopram vidas, insuflam otimismo. Na narrativa, são grandes os saltos temporais, Pando escreve no início e depois mais no final do ano. É um tempo esticado, o tempo da espera. A espera pela volta à escola e pelo reencontro com os amigos.
Os modos de escrita, no diário, convergem mais livremente na composição do texto. No meio de uma frase, Pando coloca um emoji. A imagem complementa a informação e dá um tom mais humorístico à narrativa. Tal modo de escrita revela-nos sua habilidade com os recursos semióticos dos meios digitais. No final e no meio de outras frases, Pando escreve kkkkk: “tomara [que a festa] seja divertida para minha vida melhorar kkkkk”. O riso da escrita ou a escrita que provoca o riso é, possivelmente, uma forma de resistência, de enfrentamento diante do incerto, do temeroso, do que se mostra, muitas vezes, indomável.
Sua narrativa multimodal fala-nos de como as coisas simples, como ganhar um doce após ir ao posto de vacinação ou brincar de desenhar com os primos promovem-lhe segurança e bem-estar. Para além das experiências narradas no diário, a própria possibilidade de escrever, provavelmente, o lançou para fora da monotonia, do tempo lânguido provocado pela Pandemia.
Orgulhoso de sua própria produção, Pando, autor, narrador e protagonista, ocupa a cena principal e nos apresenta, com entusiasmo e competência, como sua ação criativa o ajudou a reorganizar seu mundo frente aos desafios impostos.
Nota: Pando é o nome fictício escolhido pela criança para registros públicos.
Para saber mais:
KOHAN, W. A devolver (o tempo d)a infância à escola. In: ABRAMOWICZ, A; TEBET, G. Infância e pós-estruturalismo. Pedro & João Editores, 2019.
COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
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