Os bilreiros de março – Parte III

                                                                                            Ivane Perotti

Afora o período de embatumamento, as carapaças arredondadas, gordas de marrom e preto, fervilham no mangue: lama dos igarapés. Quatro luas. Quatro andadas. Uma nova. Uma cheia. Época do acasalamento. Competição entre os machos para fecundar as fêmeas. Hora da cata. Ribeirinhos e caranguejos respeitavam a lua. As águas. O tempo de procriação. Tudo na devida hora das fomes de cada um.  Baixando as águas, tropeariam para o mercado na cidade. Tudo custeado à base de trocas. Às vezes, vendiam a produção para o atacado. Ganhavam menos. Retornavam logo. Melhor quando os galegos visitavam a cidade. Depois de setembro. Acalculavam os dólar no cambiamento. Olho nas conta. Sonhar era bom. Arre égua! O lucro das vendas ia para a compra de coisa pouca: precisada. Umas poedeiras: ideia das crianças que cuidavam dos balaios. As garnisés corriam aranhas e cobras. A depender do tamanho das cobra. Não serviam o prato. O mocambo tinha as galinha em alta conta. Tomavam afeto.

A professora iniciou as explicações. Falou. Contou sobre os cuidados. Sublinhou os perigos. Repetiu os sintomas. Desenhou o vírus. Pintou aquelas cabecinhas de prego arrepiado pelo corpito redondo. Inté interessanti imaginar aquela titica, titiquinha, titiquita de coisinha causando o mar. Parecia macaba para boi dormir. Touro. Búfalo. Rosilho. Problema torto! Medo era medo. Mas daquela coisetinha… amenor di quarqué coisita! Difícil acreditar. A professora insistiu. Contou causo. Arremendou. Arregalou olho e boca. Se fosse visagi… Ah! Si fossi o ruão. Veia nordestina, lá dos 1940. Soldados da borracha. Deixaram crédito. Fonema. Problema? Inté qui não! Porblema era num tê farinha. Uarini.  Amarela. Feito bolitazinha. Bila. Boroca. Pirosca. Bolinha. Mandioca fermentada. Lá pelos ôtro ladu. Pareciam ovas dos peixes do rio. Rio santo. Abundado em peixe.  Então? A tal gripe era braba. Coisa séria. Muito grave. Gripe de adefuntá quarqué um. Virgi! Eita pau! O mocambo compreendeu. Visitantes não tinham. Mas da saída que se aproximava imperiosa e arriscada, bastaria uma piscadela: contaminação. Os mais velhos, sábios em conhecimentos e memória, puxaram das ervas para alento. A professora repetiu: só para os nervos. Só para os nervos. Ademais, haveriam todos de manter cuidado e atenção. Lavar as mãos. Cobrir nariz e boca. Otin não servia, não! Comprariam álcool. Os tropeadores teriam de manter distanciamento lá fora. Ela viu as cabeças roçarem as mãos. Olhos reviraram órbita.

Cabelos servindo de consolação. Lança. Caracol. Insistiu: de nada adiantariam as suas falas se todos, todos, não assumissem responsabilidade.

– Ô… Ô… Psora! A de munto nóis le arrespeita. Mas cumé qui si faiz no po-po-pô? Quando não tá istoradu, tá cheio di fica im pé!

Remexiam-se as entranhas diante da imagem dos barcos. Poucos para muitos. Um perigo.  Pensariam juntos. Pediu para pensarem nos modos de cuidarem de si.

– I dos ôtro.

A operária da educação sorriu. Agradeceu e recolheu-se. A casa que era escola, abrigava redes dentro e fora. As paredes de barro pisado davam lugar para o vento e a lua. Pouquinho mais do que brisa. Úmido. Anunciava a estação em mudança. Até julho, as águas estariam altas. Depois, iriam descer. Devagar.

Acordou com o despertar do sol. Dormira nadinha pensando o impensado. Pelas mãos de dois mirins, o dia abriu as ventas. Especialistas em catar folhas e paus na floresta, apresentaram-lhe, ansiosos, folhas e casca de abricó-de-macaco. Típica da região das cheias, a árvore servia para remédios. Moléstias que exigiam anti-inflamatórios. Era o dito pelo povo. Os mirins argumentaram que seria fácil fazer lençol para o rosto. Máscara! Bem menor. A ideia tinha fundamento. Assim, professora, estudantes e demais reuniram-se. Em duplas, fariam pesquisas e testes com o que a floresta lhes oferecia. Talvez, uma máscara segura e confortável. Ainda, se não fosse lavável com água e sabão, teriam de pensar se o material servia à viagem. Extração no cuidado da preservação. O movimento arrepiou a floresta amazônica. Levantou falação. Até os menores participavam. Os de colo, dependurados nos seios das mães zelosas. Empolgação completa. Os antigos reuniam-se para conversar conhecimentos. Tomada de alegria, a professora registrou o momento no mais fundo da memória amorosa. Emoção, motivo e parceria moviam os mocambeiros. Dias, semanas recolhendo, testando, confrontando as possibilidades de folhas, cascas, cápsulas de frutos. Eram tantas as possibilidades que, logo, criou-se espaço para estudo e outro para catalogação. Livros sobre a mata amazonense. Figuras de plantas e nomes estranhos. Abertos, folheados pelos jovens e anciãos. Uma biblioteca a céu aberto. Outro espaço era destinado à classificação dos recursos. Folhas de um lado. Cascas de outro. E mais alguns que, se não serviam para a pesquisa, serviram para muitas risadas.

Continua…


Imagem de destaque: Flick

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