Cibele Carvalho*
Em 2010, foi publicado Where Children Sleep, após cinco anos de trabalho do fotógrafo James Mollisson retratando o lugar onde dormem as crianças pelo mundo. No prefácio da versão impressa, Mollisson relata que teria cogitado atribuir o título Quartos de criança ao redor do mundo, mas que se deu conta de que a ideia de um quarto infantil derivava de sua própria experiência e cultura, não sendo, portanto, adequada para compreender outras realidades.
Como observa Mollison, embora o quarto de criança seja um espaço quase naturalizado, ele não faz parte das formas de habitar das crianças de culturas indígenas, é relativamente recente na história da arquitetura doméstica e continua não sendo realidade para parcelas desfavorecidas da população. De modo que, com a adoção da quarentena como medida sanitária necessária para barrar a propagação da COVID-19, os profissionais da educação têm se perguntado onde (e como) quarentenam as crianças.
As desigualdades habitacionais, que sempre deram sua contribuição para o agravamento das desigualdades escolares, ficaram ainda mais evidenciadas com a crise sanitária: enquanto crianças contemporâneas de classes favorecidas contam com um quarto para si, cerca de 12 milhões de brasileiros vivem em situação de adensamento familiar excessivo, segundo o IBGE. Diante dessa situação, caberia analisar as implicações menos evidentes da posse precoce de “um teto todo seu”, para lembrar de Virgínia Woolf.
A designação de um cômodo para os filhos (ou de um cômodo para cada filho) está evidentemente relacionada ao reconhecimento, historicamente recente, da criança como sujeito. Contudo, caberia lembrar que essa disposição espacial garante uma maior privacidade não apenas aos filhos, mas a todos os membros da família. Longe de ser um acessório de luxo, a privacidade, garantida por uma maior disponibilidade de espaço/cômodos por habitante, tende a reduzir o desgaste das relações familiares e a incidência da violência doméstica, como sugere uma pesquisa sobre infância e violência realizada pelo Centro de Análises Econômicas e Sociais (Caes) da PUC/RS.
Além de garantir a privacidade dos membros da família, a posse de um quarto para si favorece o desempenho escolar. Pesquisas mostram que a repetência escolar é mais incidente entre crianças que dividem o quarto com seus irmãos. Uma explicação para isso viria das próprias condições materiais para o estudo: uma busca rápida em sites de decoração pode mostrar que a maior parte dos quartos infantis são multifuncionais, ou seja, não se reduzem a quartos de dormir, mas comportam escrivaninhas e pequenas bibliotecas que fazem do cômodo uma espécie de “anexo da escola”, como bem define o sociólogo da educação Roger Establet.
Com a suspensão temporária das aulas e a possibilidade de adoção do ensino remoto, o espaço virtual de estudo se tornou um recurso tão importante quanto o espaço real. Contudo, de acordo com a pesquisa TICKids Online 2018, a maior parte das crianças brasileiras entre 9 e 17 anos das classes D e E acessam a internet exclusivamente pelo celular, enquanto crianças das classes A e B da mesma faixa etária acessam não só pelo celular, mas também por computadores. Ainda segundo essa pesquisa, crianças das classes favorecidas declararam utilizar mais a internet no espaço privado do que as crianças de camadas populares, que lidam também com a limitação dos pacotes de dados e a má qualidade da internet.
Além das condições materiais (reais e virtuais) para a realização das atividades escolares, o quarto infantil também produz efeitos simbólicos, na medida em que comporta em seus móveis e objetos de decoração, a narrativa biográfica da criança e as expectativas parentais. Essas expectativas, que sabidamente produzem efeitos na trajetória escolar dos filhos, são ampliadas nas classes médias, cientes da capacidade da escola de garantir ou elevar sua posição social.
Tendo em vista as múltiplas e desiguais realidades sócio-espaciais em que quarentenam as crianças brasileiras, a política sanitária do confinamento não deveria estar dissociada de iniciativas governamentais que busquem amenizar seus efeitos no agravamento das desigualdades escolares, de forma a garantir, no espaço privado, o direito à educação que lhes era ofertado no espaço público. Isso se mostra ainda mais necessário na medida em que especialistas da área da saúde têm apontado para a possibilidade de que o distanciamento social se torne não apenas uma solução temporária e emergencial, mas uma medida colocada em prática de modo intermitente no futuro próximo.
* Pós-doutoranda da Faculdade de Educação da UFMG junto ao OSFE
Imagem de destaque: Gabriel Tovar / Unsplash