Laços do Inferno

– grotescas cenas que Dante não previu –

Ivane Perotti

“Abril é o mais cruel dos meses, germina

Lilases da terra morta, mistura

Memória e desejo, aviva

Agônicas raízes com a chuva da primavera.

O inverno nos agasalhava, envolvendo

A terra em neve deslembrada, nutrindo

Com secos tubérculos o que ainda restava de vida. […]”

 (S.T. Eliot)

Os meses descontam dias. Dias sem bala. Dias com bala. Dias com chuva. Dias sem sol…e dias como este, encravado na história que a vida não rodeia para guardar:

_ Alberto!? Já resolveu aquele galho?

_ Já. Tudo certo. Agora…

_ Não diga o que não se deve dizer por aqui.

_ Mas é que…

_ É nada! Agora o mundo leva a culpa e nós não somos presos.

_ Mas a gente…

_ A gente sabe. A gente sabe…

_ A conta deu…

A conta à qual Alberto referia-se na ligação telefônica era uma soma. Daquelas somas que fazem o deserto avermelhar-se pela abundância de zeros à direita dos números. O que deveria acontecer como experiência histórica, recorta “uma” das ações criminosas que, em cascata de exemplos, expandem-se, diante dos narizes tapados dos que ainda negam o território das balas, dos bandidos, dos insanos, dos grotescos…  cresce o desamparo à vida, à ética – pobre ética!  Esconde as fuças descarnadas pelas balanças dos mocinhos. Avoluma-se a bocarra do poder e a língua trifurcada da ganância. Trufas em cifras animam os comensais. As cenas nossas de cada dia instalam um desgovernado roteiro de crimes sociais, crimes que se transformam em tragédias com nome e endereço pontual.

O mundo descolore-se no mapa dos flagelos. As palavras que em Sartre ganharam sabor de inquietação, em Shakespeare desnudaram o subjetivo das guerras pessoais, em Dante, Baudelaire, Joyce, e tantos outros, desfilaram o humano/desumano entre os infernos pessoais, arregaçam-se agora, escalpeladas pelo manuseio tórrido de verdades mentirosas ou mentirosas verdades ou outra locução a se criar – criar-se? Pois assim anda e permanece o delírio que Dante não conseguiu imaginar. A Divina Comédia (ALIGHIERI,1472) foi um prefácio, antepasto literário com o qual Alighieri alimentou a narratividade dos humanos por séculos. Um antepasto. Agora, alimentar-se de palavras torna-se uma odisseia nada épica: o mundo cansou de heróis. A saúde pública assume o lugar do divinatório. Se o divino permitir-se presente. Em sendo…

As faces não ardem pelas inverdades pegas em pleno ato. Os atos não são o que se poderia pensar que eram, pois a teoria filosófica sobre as metáforas de Ricoeur (1978), transformou-se em mastros de bandeiras levados à cabeça das informações. E a interpretação, pobre dela, relegada ao pódio dos interesses descarados, não cabe mais à recursividade linguística. As palavras jamais voltarão a Elliot: “Penso que estamos no beco dos ratos/Onde os mortos seus ossos deixaram.” (1922).

Tão grande é o desejo de reverter a ficção atual registrada pelos desatinos e desvarios de poucos que, levados pelo instinto de sobrevivência, busca-se a poesia: um refrigério, um oásis, uma ilha desabitada, um silêncio, não mais do que um silêncio pueril. Não! Pueril, não! Esse é o sortilégio pelo qual traquinam as palavras: uma busca a outra e a suruba retorna à vida real. Não!

O Enterro dos Mortos (ELLIOT, 1922) desgruda-se de A Terra Desolada (idem). Por quem choram as palavras? Choram por nós, Hemingway, choram por nós! E os sinos não podem dobrar pelas mortes que se multiplicam, multiplicam e caem no esquecimento letal.

_ E daí?

Daí que uma nação oferece-se ao sacrifício que não lhe cabe. Cabe? A história que se conta, conta a si mesma.

“[…]Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham

Nessa imundície pedregosa? Filho do Homem

Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces

Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol

E as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consolam o canto dos grilos […]

(ELIOT, 1922)

Se a nação pudesse lembrar-se povo, e o povo ressuscitasse as palavras, talvez a apresentação do poeta tivesse êxito: “Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.” (ELIOT,1922). Então, comensais tresloucados serão presos pela soma das mortes anunciadas.

Referência: ELIOT, T.S.(1922). A terra desolada. Trad. Ivan Junqueira. (Le Livros/site)


Imagem de destaque: Priscila Paula

 

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