Cleiton Donizete Corrêa Tereza
Em meados de 1999, em uma tarde de certo marasmo, no interior do estado de Minas Gerais, um grupo de amigos, cada um na própria casa, assistiu ao filme Skates na pista da morte, estrelado, mas nem tanto, pelo ator Christian Slater. Após o término do filme, exibido na Sessão da Tarde, da Rede Globo, os meninos se encontraram na rua em que moravam como era de costume, e começaram a comentar entusiasmados sobre o que haviam assistido. Na empolgação, acabaram combinando de comprar skates, mesmo sem saber onde. Eu era um desses garotos. Minha vida nunca mais foi a mesma depois desse dia e, as tardes tediosas para um adolescente de quatorze anos, que vivia em uma pequena cidade ganharam outro ritmo, com outras possibilidades, muitas novidades! Com o skate vieram músicas, viagens, perrengues, tretas, campeonatos, um estilo de vida, novas amizades, outras vivências. Enfim, muita coisa ‘dahora’!
Naquela época, eu estava na transição do ensino fundamental para o médio e cada vez mais fui me identificando com o esporte e tudo que ele pode envolver. O skateboard compõe uma cultura, que é diversificada, difícil até de definir, e envolve elementos do que, naquela época, era chamado especialmente de streetwear. Essa cultura urbana, com suas formas de comportamento, vestimentas, expressões eram muito diferentes e pouco aceitas nas escolas. O skate, as calças largas abaixo da cintura, muito usadas naquela época, as gírias próprias, nada disso era bem-vindo. Especialmente em uma realidade tão conservadora, afastada dos grandes centros e fortemente influenciada pela ideologia agro de uma cidade que tem, ainda hoje e parece que para sempre, o fardo da produção cafeeira como carro chefe de sua economia monocultora voltada para exportação.
As edições das revistas de skate daquele período, como a Tribo Skate, que conseguíamos a duras penas, já que as lojas especializadas ficavam a quilômetros de distância, em cidades vizinhas, e a grana era pouca para tudo, já traziam a discussão sobre profissionalização do esporte e os benefícios e prejuízos com a inserção crescente do skate no circuito comercial mainstream, que poderia significar a entrada do carrinho nas Olimpíadas.
Com o passar dos anos, a realidade mudou para aquele grupo de garotos e para o skate, mas sempre continuei praticando, mesmo que esporadicamente, por conta das demandas da vida adulta que envolveram a busca por emprego fixo, faculdade, engajamentos sociais, namoros, depois constituição de um núcleo familiar e a paternidade. O skate se desenvolveu mais e mais, surgiram outras modalidades, uma infinidade de manobras e combinações, skatistas do Brasil e do mundo tornaram-se superstars e personagens de videogame. Os conteúdos se ampliaram com as novas mídias e redes sociais, até em uma publicidade dissonante, como de alistamento no serviço militar obrigatório brasileiro, o skate aparecia. E a escola, mudou? A escola muda lentamente.
Quando comecei a lecionar, com uma aparência de alguém que poderia ter saído das ruas e entrado na sala de aula na condição de docente, os preconceitos com os skatistas continuavam. Não sem total razão, é preciso dizer, sobretudo para os professores reacionários; afinal, sem querer cair em estereótipos, é notória certa petulância e a dificuldade de se adequar a espaços formais, com regras que tentam ser afirmadas o tempo todo, em que se busca o controle dos corpos de diversas maneiras, exigindo em geral uma posição de estar sentado por horas em um cadeira, circunscrito aos ditames da autoridade autoritária durante a maior parte do tempo, como ouvinte e registrador de informações; não é um ambiente chamativo e de agradável aceitação para jovens que passaram a ter como sua atividade preferida deslizar e saltar por obstáculos nas ruas e nas pistas, realizando manobras no asfalto, na madeira, no concreto e onde mais for possível. Essa é uma fórmula, somada a outros elementos, propícia para conflitos. Ou seja, skatistas não têm fama de bons alunos. Prova disso é que desconheço, na região em que moro, isso não quer dizer que não existam, pistas de skate em escolas, mesmo que este tenha se tornado, com o passar das décadas, um dos esportes preferidos dos brasileiros, levando o Brasil a chegar na Olimpíada de Tóquio com a delegação máxima permitida para um país: doze atletas, nas modalidades Park e Street, feminino e masculino. As duas escolas em que estive e vi pistas de skate disponíveis aos estudantes foram no estado de São Paulo, o Projeto Âncora, em Cotia, e a E. M. Amorin Lima, no Butatã. Não à toa, duas escolas consideradas referências de educação democrática e inovadora, mesmo com suas contradições. Isso é significativo.
O skate tem conseguido manter sua ousadia, sua subversão, sua pegada forfun, nas mais diversas modalidades, como downhiil, slalom, vertical, freestyle, longboard, park ou somente num rolezinho despretensioso em um fim de tarde. Mas, sem dúvidas, é o street skate, o skate verdadeiramente praticado pelas ruas das cidades, que expressa com mais vivacidade as complexidades e singularidades do universo skatista no espaço urbano. Como dizia o saudoso skatista e vocalista da banda Charlie Brown Jr, Alexandre Chorão, o skatista vê a cidade de uma forma diferente, enquanto muitos enxergam uma escada ou um corrimão como objetos para ajudar a subir, o skatista pensa em pular ou descer escorregando sobre eles. Acha um pouco exagerado dizer que skatistas habitam a cidade de forma diferente? Fique sabendo que essa questão tem sido motivo de estudos, como na dissertação de mestrado intitulada “De ‘carrinho’ pela cidade: a prática do street skate em São Paulo”, e a tese de doutorado nomeada “A cidade dos picos: a prática do skate e os desafios da citadinidade”, ambas de Giancarlo Machado, defendidas no departamento de Antropologia Social da Universidade de São Paulo, em 2011 e 2017, respectivamente.
A vida de skatista, que na verdade se mistura a outras referências, outras questões de reconhecimento, permite um diálogo fecundo com questões educativas. Um skatista que circula pela cidade rompe com a lógica do condomínio – que fragmenta e cerceia as experiências nas cidades, aprofundando desigualdades, sofrimentos e afetando negativamente a possibilidade de uma sociedade democrática –, estimula o maior conhecimento do próprio corpo, colabora na construção da personalidade autêntica e envolve a contínua valorização da coletividade, afinal, por mais que seja um esporte individual, as sessões acontecem em grupo, em que um reconhece, valoriza, estimula e socorre o outro. Tais pontuações não significam que o skate seja a solução para a juventude e que não esteja implicado em problemas complexos que afetam a sociedade, como atitudes machistas, agressivas, nonsenses e uso de drogas. Porém, de forma alguma a prática e os praticantes do skate podem ser reduzidos a isto. Skate, para retomar a frase antiga, da época em que Jânio Quadros o proibiu na cidade de São Paulo, no contexto pós-ditadura: não é crime. Assim, a escola pública também não pode ser reduzida às suas dificuldades, como instituição propositalmente fragilizada e imersa em uma sociedade capitalista profundamente problemática.
Portanto, é possível e saudável estimular a prática do skate no ambiente escolar e isso pode contribuir para promover e ampliar a identificação dos jovens com escolas, de forma que o skate se fortaleça e a escola também. Pistas podem ser construídas nas escolas, mas como sabemos das dificuldades de financiamento adequado da rede pública básica, lugares como o pátio e as quadras podem ser utilizados e obstáculos disponibilizados. E é possível mais que isso. As equipes escolares, junto aos estudantes, podem organizar aulas de skate com os menores, oficinas regulares com os maiores, e que não envolvam “somente” o skate, mas também músicas, danças, reflexões, enfim, diferentes linguagens e temáticas em ações que são sim muito pedagógicas. Lembro que há alguns anos, no mês de novembro, em uma das escolas em que trabalho, por ocasião da semana de Educação Para a Vida, fizemos um evento de dois dias que recebeu o nome de Skate e Basket Art Afro, em que desenvolvemos, em parceria com muitas pessoas, inclusive com uma loja de skate da cidade, oficinas de tranças e trançados, grafite, produções audiovisuais, confecção de bonecas Abayomis, expressão teatral, dança, dentre outras realizações. E ainda, campeonato de Basket de rua e apresentações de skate. O evento aconteceu nos três turnos, com um bom engajamento, mas também percebemos a necessidade de envolver mais os professores e os estudantes do ensino médio em outra ação neste sentido. Desse projeto ficaram muitos aprendizados e um Paulo Freire bonitão grafitado em um muro, um símbolo da nossa escola.
São possibilidades que não podem ser negadas no espaço escolar. Já estamos fartos de cloroquina e negacionismo também na educação. Integrar e valorizar os interesses dos estudantes nos projetos político-pedagógicos das escolas e estimulá-los é importante. Com a participação do skate na Olimpíada e assim, a maior visibilidade do esporte/cultura, temos um bom mote para a conciliação e a parceria constante entre escola e skate.
Por outro lado, é notório que a isenção do skate nas Olimpíadas ainda continua a levantar dúvidas sobre os efeitos em seu viés alternativo, autêntico, libertário. Com os Jogos Olímpicos, mesmo contrariando o chamado espírito olímpico, pode vir a competitividade extremada, as padronizações, as distorções midiáticas e as interferências brutais do setor empresarial. Ora, esses não são alguns dos grandes problemas para a educação pública brasileira atualmente? Prova dessas preocupações foram as inúmeras falas dos integrantes da Confederação Brasileira de Skate (CBSk) na coletiva de imprensa do último dia 04, com a ilustre presença do “embaixador” do skate brasileiro, Bob Burnquist, ressaltando que o mais importante é que os atletas estejam sempre se divertindo e que esse feeling nunca deixará de fazer parte do mundo do skate. Nessa histórica entrevista, pela primeira vez foi apresentada pública e oficialmente parte dos atletas olímpicos que disputarão os jogos. Em meio a muitas explanações sobre a construção da Confederação e do skate brasileiro até esse já celebrado pódio, que é a participação olímpica, sendo conduzida por pessoas que praticam e/ou amam o skate, após terem que lidar com a ameaça de uma pseudo confederação sinistra, que surgiu de forma oportunista visando se apossar dos recursos (aquela cartolagem parasita), Rayssa Leal, a caçula da seleção, com apenas 13 anos, deu a letra dizendo que o que vai acontecer “é diversão com responsabilidade”.
Será que nessa fala não está expresso um aprendizado de gerações de skatistas que poderia ser profundamente considerado nas escolas? Podemos refundar as escolas públicas superando o desinteresse, a burocracia, o tecnicismo, a precariedade, o corporativismo, a cultura da violência, por meio de práticas pedagógicas e organizativas, nos ensinos fundamental e médio, desenvolvendo com sinceridade, estudo e engajamento, uma educação divertida e responsável?
Para saber mais:
BRANDÃO, Leonardo; MACHADO, Giancarlo Marques Carraro. A pesquisa sobre skate nos programas de pós-graduação do Brasil: panorama e perspectivas. Recorde: revista de história do esporte. Vol. 02, n.12, 2019. Disponível aqui.
SKATE BRASIL. Coletiva da seleção brasileira olímpica de skate. 04 de jul. de 2021 – SP. Disponível aqui.
ESCOLA ESTADUAL DAVID CAMPISTA. Semana de educação para a vida. 20 de nov. de 2017. Disponível aqui.
Imagem de destaque: cedida pelo autor.