Olhos de cristal

Amanda Faria Passos

Há quanto tempo nos conhecemos?… Provavelmente mais do que possa me recordar, desde que me entendo por gente. Sempre voltamos juntos da escola, o que ele dizia ser manicômio. Faça chuva, faça sol ou até mesmo granizo, estamos voltando juntos. Mesmo com apenas um guarda-chuva quebrado e ordinário, dividimos se fosse precioso.

Hoje, por algum motivo, seu humor tá mais sombrio. Os cabelos bagunçados como sempre, seu charme natural. Roupas escuras, “Eu sou Emo”, quando não se dizia do rock. Fala sério, não é fácil aturar alguém com tal beleza cuja personalidade infeliz é uma barreira entre nós. O Yin e o Yang, obviamente, sabemos quem seria quem. Convenhamos que essa pessoa tem uma inclinação pro Yin, contudo isso é segredo. O contraste era escandaloso. Naquele sol escaldante caminhava lado a lado alguém com roupas alegres e suaves e a outra pessoa com roupas pretas. Não demoraria muito pra adivinhar o que a pessoa de nuances pretas iria fazer a seguir.

O caminho que passávamos era uma rua deserta e de classe média. Jardins e ipês podiam ser vistos de todo lado no início da primavera, dia 22.

“Primavera, você infelizmente chegou aqui.”

Ao ouvir meu nome olhei pra cima. “Por que infelizmente?”

“Eu não posso usar minhas roupas pretas sem sentir calor!! Aaaah!” Com um surto repentino, tirou sua jaqueta todo desajeitado e pegou a garrafa de água gelada pousada ao lado da minha mochila. Exasperado, Inverno jogou sua mochila no chão e se molhou de cima a baixo.

Alguns dias eram assim. Caóticos. Outros zoeiro, como quando eu não controlava minhas expressões faciais e isso era motivo para zoação sem sentido.

A intimidade entre a gente era algo anormal. Quem via provavelmente achava que estávamos brigando.

“Deixa eu provar isso!” Supliquei.

“Vê se não come tudo.”

“Eu tô pagando e aliás… você comeu metade do meu!”

“Asquerosa” me insultou.

“Sanguessuga” rebati.

“Você devia me bancar!”

Jogou seu charme lançando um olhar pra mim. Qualquer coisa era suspeita. Quando parecia haver algo diferente do que zoeira e raiva, poderia ser golpe. Quando havia genuinidade, logo em seguida havia um surto.

“Por favor não me faça repetir essa frase tão fofa! Eu vou te dar uma rasteira” O que poderia ser um elogio ou algo parecido, logo se tornou agressividade. Poderia ser uma negação interna?

Um dia decidimos passar por um atalho e nos encantamos com uma loja de pedras energizadas. Por um acaso a vendedora sabia a pedra de cada pessoa através de algo chamado ‘chakra’. Como quase sempre, Inverno não gostou da sua. Era cinza e desnivelada, ao contrário da minha que era lisa e brilhante. Combinavam com a gente e acabei convencendo que sua pedra não era menos especial que a minha através do significado.

Alguns dias se passaram e a pessoa que, no caminho de ida e volta ria do carteiro correndo do cachorro estava de cabeça baixa. Não estava perguntando se tinha alguma coisa na mochila pra comer e nem enchendo o saco sobre a letra do meu telefone. Até mesmo as zoeiras aleatórias que me deixavam alegre, não estavam lá. Sim, às vezes ele podia ser assim. Nesses momentos descobri quando Inverno podia ser mais coração frio.

Estávamos acostumados um com o outro, embora ele agisse como se eu não tivesse solenidade. Aquele dia tive que mostrar isso. Na verdade, só contei um lado do Inverno. Eu não consigo desvendar sua genuinidade oculta. Ele vivia em conflito interno ao ponto de não admitir nada. Quando percebi, estava remoendo tudo de ruim do mundo, talvez sempre estivesse lá.

Inverno não sabia o porquê de, quando me encontrava na ida pra escola, eu estar com uma bolsa térmica. Na volta eu estava com um óculos e segurando a bolsa térmica como se fosse minha vida. Aqueles olhares estranhos e desconfiados continuaram sobre mim.

Eu me apoiava em seu ombro que era mais alto que o meu. Meus passos pararam e Inverno me observou irritado. “O que foi agora!”

“Sua voz mudou de novo.” Eu observava inconsciente quando sua voz intercalava em tons, como alguém no pico da puberdade. Era sempre rouca, forçada, com uma dicção horrível mas serena. “Eu preciso lhe dar algo.” Agachei no chão e peguei com cuidado o que estava dentro da bolsa térmica.

Ele quase teve um infarto quando viu aquelas orbes na minha mão pequena. “ISSO” Cauteloso e espantado, Inverno pegou aqueles olhos e sobrepôs aos seus. Fiquei feliz em ver que Inverno não ficou apreensivo, mas o que veio logo em seguida me deixou preocupada. Lágrimas de sangue contínuas desceram e Inverno caiu ajoelhado no chão com o olhar baixo.

Tentei  alcançar com as mãos trêmulas o rosto pálido de Inverno, mas fui impedida por um empurrão brusco quando toquei as bochechas em bordô. Logo após, as lágrimas que desciam eram claras como cristal. “Idiota, você me deu seus preciosos…”

“Quem enxerga o mundo como eu, nunca deixa de ver. Aliás, meus olhos não são como os seus, são regenerativos. Eu-eu… não quero que você mude, apenas veja um pouco como eu enxergo.”

Ele tirou os seus olhos e me entregou. “Equilíbrio.”

 

Sobre a autora
Instituição: Curso (R)evolução. E-mail: amandafaria754@gmail.com


Imagem de destaque: Galeria de imagens.

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