Não existe, em nossa língua, teatrólogo mais antigo e mais atual que Gil Vicente. Nascido, provavelmente na cidade portuguesa de Guimarães, berço de inúmeros joalheiros ou ourives – Gil Vicente teria sido também um cultor da arte da ourivesaria – e uma das mais importantes cidades históricas daquele país. Seu nascimento data de 1465, para a maioria dos seus biógrafos e estudiosos do teatro vicentino, mas foi no ano de 1502 que Gil Vicente entrou, literalmente, em cena.
Naquele início de século, nascia o filho de Dom Manuel, o Venturoso, e de Dona Maria de Aragão, o futuro Dom João III. Com a licença do rei, Gil Vicente, vestido de vaqueiro, entrou na Câmara Real e encenou a sua primeira peça teatral, Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação. A peça encantou de tal maneira aos reis, que os mesmos pediram a Gil Vicente que a encenasse nas matinas de Natal, dias santos e páscoa. Empolgado, o autor/ator não perdeu tempo para criar outras tantas peças, muitas de muito sucesso. E foi justamente o seu sucesso meteórico que acabou por incomodar os eruditos cortesãos da época que duvidavam da autoria de suas peças. Como provar então que o autor era ele, e não outro alguém que se passava por ele? Deram, então, a ele um mote e, em cima dele, teria que escrever uma peça.
Os eruditos não fizeram outra coisa se não cutucar a onça com vara curta. O mote era este: Mais quero um asno que me carregue, que um cavalo que me derrube. Gil Vicente não fugiu da raia, ou melhor, não fugiu de cena, e escreveu uma de suas mais populares peças, a Farsa de Inês Pereira. Provada a autoria das peças, teve ele sossego merecido para escrever mais, possivelmente 44 peças, já que foi este número que aparece na compilação feita por seu filho Luís Vicente, após a morte do pai. Nesta antologia, Luís Vicente classificou as peças em autos e mistérios (as peças com teor religioso) e farsas, comédias e tragicomédias (as consideradas profanas).
Explorando o teatro popular, não seguindo, portanto, o teatro tradicional, com as suas três condições básicas – tempo / espaço / ação –, Gil Vicente é o primeiro escritor a desobedecer a língua portuguesa, fazendo parte de um seleto grupo, como Guimarães Rosa, Mário de Andrade e Manoel de Barros, para ficarmos apenas com esses três notáveis brasileiros. Usando dos versos redondilhos, principalmente dos maiores (sete sílabas poéticas), os personagens recitavam falas rimadas e musicais, o que facilitava a memorização do texto, como podem ser comprovados nestas falas do Anjo, retiradas do Auto da Barca da Glória:
A /Vir/gem/ No/ssa /Se/nho/ra
1 2 3 4 5 6 7
Se/rá a/ su/a /sal/va/do/ra
1 2 3 4 5 6 7
Gil Vicente, além de teatrólogo, era também poeta, portanto, um poeta-dramático. Expoente do Humanismo português, período de transição entre a literatura trovadoresca e a renascentista, Gil Vicente pisava com um pé na idade média e com outro na idade moderna.
Em suma, o escritor viveu o final do Teocentrismo e o começo do Antropocentrismo. Como citei anteriormente, sua formação era teológica, Gil Vicente era um católico fervoroso, um cristão de primeira ordem, que não via com bons olhos o comportamento nada convencional da sociedade de sua época. Preocupado com a salvação das almas, desfilavam diante de si, um amontoado de gente torta e pouco dada a virtudes, como juízes e advogados corruptos, médicos incompetentes, padres namoradores, alcoviteiras, cafetinas e prostitutas, comerciantes desonestos, agiotas, judeus, nobres exploradores, prepotentes, vaidosos e ociosos, mulheres interesseiras, fúteis e casadoiras, parvos, judeus casamenteiros, velhos ridículos, babando por mocinhas que poderiam ser suas netas, mulheres adúlteras, ambiciosos sem limites, camponeses, marinheiros, nem mesmo os do alto escalão, tanto do clero como da nobreza, escaparam de sua pena crítica…
Nasciam assim seus personagens alegóricos, que simbolizavam instituições, classes, profissões, grupos etc. Seguindo o famoso ditado em latim, ridendo castigat mores, isto é, rindo, castigam-se os costumes, Gil Vicente procurava conscientizar as pessoas de seus sucessivos erros, com a única intenção de reaproximá-las de Deus.
No Brasil, Gil Vicente é ainda pouco explorado, isso por conta de sua linguagem, que assusta até mesmo aqueles que se propõem voluntariamente a conhecer um pouco de seu universo teatral. Apesar de ser uma figura fácil nas provas dos diversos vestibulares do nosso país, o pai do teatro português está ainda muito distante de ser um autor popular entre os estudantes, mas o fato é que esse português não poupou sua pena cômica e mordaz para denunciar o que era preciso. Gil Vicente teria morrido em 1536, ano de sua última peça de teatro, Floresta de Enganos, depois dela, nada mais foi escrito.
Para saber mais:
VICENTE, Gil. Auto da Embarcação da Glória, org. Prof. Paulo Quintela, Coimbra: Coimbra Editora, s/d.
Imagem de destaque: Almondega / Wikimedia Commons