Entre ser humano ou máquina

Evelyn Orlando

Uma entrada, ainda que rápida, nas redes sociais é suficiente para que tenhamos que enfrentar o número avassalador de perdas todos os dias. Às vezes, confesso, prefiro não ver. Sufoco. O peito aperta. Choro de impotência e paro. Não é possível continuar sob o impacto da tristeza, do medo, da total falta de controle dessa situação. Meu corpo, anestesiado, vive um choque permanente. Respiro. Me recomponho. Vontade de gritar, como se meu grito pudesse parar tudo isso. Meu corpo inteiro dói. De cansaço, de fadiga, de muitas horas sendo castigado em frente ao computador, mas dói ainda mais o desespero. Descubro que desespero dói, e muito. E o pior, prefiro que doa. Porque a dor me faz sentir viva. E todos os sentimentos que vêm junto com ela me lembram que ainda sou humana. E me deparo com meu mais novo desespero. Preciso me manter humana! 

Não sei em que momento exatamente as pessoas deixaram de sentir dor, deixaram de se importar, deixaram de ser humanas. Em que momento nos automatizamos a ponto de, em apenas um clique, conseguirmos mudar de ambiência, de assunto, de sentimento e de discurso. Em que momento saímos dos “meus pêsames”, “sinto muito” para os “parabéns”, “sucesso”, assim, em uma fração de segundos? Em que momento automatizamos nossos sentimentos ao ponto de nossas ações serem cadenciadas pelo ritmo e teor das mensagens que chegam freneticamente em nossos celulares?

Estamos virando máquinas. Nossa solidariedade às 300 mil mortes que hoje solapam o Brasil dura cerca de alguns segundos ou poucos minutos de algumas palavras que simulam empatia. Mas a empatia não é um valor que cultivamos. Em pouco tempo, seguimos o curso, no automático, embalados pelo ritmo acelerado que não nos permite pensar. Nossas ações, cada vez mais mecânicas e burocratizadas, vão dando conta de cada coisa a fazer, com as palavras certas para cada momento. Morte, vida, sucesso, conquistas, demandas orientam nossos movimentos na mesma fração de segundos em nossa timeline. Não pensamos. Não precisamos pensar. As mensagens estão prontas, são quase padrão. E ainda tem um catálogo de figurinhas que nos ajuda a enviar rapidamente uma mensagem mais simpática. Isso, sem mencionar aqueles e aquelas para quem 3000 mortes por dia não significam mesmo nada; não se comovem porque realmente não se importam. 

Mas, por vezes, vamos além e tentamos ser mais solidários. Com uns, festejamos, sob o argumento de que precisamos celebrar o que ainda há para ser celebrado. Nosso curto raio de visão é incapaz de ver que há muito pouco a ser celebrado atualmente. Mas é preciso o verniz, o mise en scène que valoriza mais o se “alegrar junto” do que o “chorar junto”. É curioso como aceitamos melhor quando alguém não pode ir a um velório do que a uma festa. Isso pode nos dar muitas pistas sobre nós mesmos.

Com os que sofrem, ao tentarmos ser solidários e avançar além das mensagens pro forma, muitas vezes nos limitamos a dizer: – “sinto muito por você e por sua perda”, mas a vida segue… Precisamos ser fortes, superar, seguir em frente. Mas não há muito tempo, então se apresse. O trabalho ajuda a superar a dor.

Porque acreditamos nessa falácia que nos rouba o tempo de sofrer, de chorar, de nos solidarizar e nos transforma em máquinas de produção que competem entre si, por mais que isso pareça irreal, ou porque não queremos parecer fracos, perdidos e assustados mesmo quando é exatamente assim que nos sentimos, andamos, seguimos, anestesiados, repetindo roboticamente essa mesma ideia pelo caminho, participando desse jogo de cenas que nos embota o pensamento. 

Até não sentirmos mais nada, nem dor, nem choque, nem espanto. Seguimos na força da inércia, transformando-nos gradativamente em máquinas com aparência humana. 


Imagem de destaque: Freepik / Yanalya 

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