Maíra Porã Santos1
Ana Regina Machado2
Celina Maria Modena3
Na década de 1990, Belo Horizonte protagonizou importantes transformações da lógica de atenção às pessoas em sofrimento mental, no âmbito da Reforma Psiquiátrica Brasileira Antimanicomial.
No campo da infância e adolescência, duas experiências se destacam por seu pioneirismo e importância histórica na constituição de uma política pública para crianças e adolescentes, quais sejam, os Fóruns Regionais de Atenção à Saúde Mental da Criança e do Adolescente e o Projeto Arte da Saúde – Ateliê de Cidadania. Os Fóruns Regionais, com a participação de diferentes setores, além de membros dos Conselhos Tutelares e outras instâncias comunitárias se mostraram essenciais para fundamentar a construção de outra abordagem às questões da infância, a partir do diálogo intersetorial.
O Projeto Arte da Saúde – Ateliê de Cidadania surge em 1993 como uma proposta do campo artístico e cultural da cena de serviços substitutivos do município. Inicialmente criado para ofertar cuidado a crianças e adolescentes refratárias ao sistema educacional, essas “crianças-problema” poderiam através da arte e da convivência com um grupo de pares com histórias semelhantes às suas, constituir novas saídas para seu sofrimento e, portanto, driblar o fado do fracasso ao qual estavam submetidas enquanto crianças diferentes destinadas às “escolas especiais”. Neste sentido, a proposta de Rosalina Teixeira Martins, autora do Projeto Arte da Saúde é
que num universo simbólico menos viciado e com menos estigmatizações demarcadas, a criança pode lançar mão de seus códigos, exercer seus talentos e aptidões. E é nesse ponto que entra esse efeito meio mágico da subjetividade, da redescoberta da auto-estima, do gosto pelo conhecimento, pela competência própria, e, porque não, pela afirmação (TEIXEIRA, 2008, p. 179).
Durante 15 anos, o Projeto Arte da Saúde funcionou apenas na Regional Leste da capital, até que em 2008 consolidou-se como uma resposta política à questão da demanda à saúde mental de crianças e de adolescentes em rota de exclusão social, sendo replicado nas 9 regionais de Belo Horizonte.
Atualmente são garantidos recursos para manutenção de 51 oficinas de arte, com capacidade para atendimento de 1224 crianças e adolescentes a partir de atividades que envolvem artesanato, música, esporte, teatro, dança, visitas a museus, cinema, passeios pela cidade, entre outras, com o objetivo de interromper rotas de exclusão social baseado na construção de projetos pessoais fundados na participação social em um espaço que as provoque na busca pela autonomia e auto-estima. Assim, o Projeto visa à construção da cidadania através do fortalecimento do protagonismo infanto-juvenil.
O público-alvo atendido é de crianças e adolescentes refratárias aos seus espaços sociais de convivência, principalmente a escola e a família. Além de vítimas de abusos de todas as ordens, abrigados, institucionalizados, em sofrimento mental, adolescentes infratores, meninos e meninas pejorativamente denominados de “crianças-problema”.
As crianças e adolescentes participantes do Projeto são encaminhadas pelas escolas, por profissionais da assistência social, até mesmo por serviços judiciais e também outros serviços de saúde por meio da construção de um projeto terapêutico junto ao Centro de Saúde ao qual estão vinculadas. Além das atividades realizadas pelos monitores de arte das oficinas, os casos são acompanhados por uma coordenadora regional, responsável pela coordenação dos núcleos de oficinas e pela articulação contínua em busca de respostas às demandas de cuidado apresentadas por cada participante e seus familiares.
Deste modo, observamos que o Projeto Arte da Saúde – Ateliê de Cidadania é norteado pelas concepções antimanicomiais do cuidado em liberdade e da cidadania, da territorialização do cuidado e do acolhimento como ferramenta de trabalho e da integralidade como diretriz de suas ações baseado na compreensão de seu serviço como parte integrante do Sistema Único de Saúde. Suas práticas de cuidado se fundamentam no ideário democrático, no intercâmbio de ideais baseados em experiências internacionais de cuidado em saúde mental e no amadurecimento crítico das ofertas de atenção à saúde. Seu reconhecimento como um trabalho inovador e eficaz motivou importantes premiações de âmbito nacional, entre elas menção honrosa no “Prêmio Itaú/Unicef – Educação e Participação”, de 1999.
Este Projeto foi objeto de estudo da dissertação de mestrado intitulada “Práticas de cuidado em saúde mental infanto-juvenil: a constituição do Projeto Arte da Saúde – Ateliê de Cidadania”, desenvolvida no Instituto René Rachou na FIOCRUZ – Minas. Com uma proposta metodológica de abordagem qualitativa, objetivou compreender o processo de constituição e as práticas de cuidado do Projeto Arte da Saúde – Ateliê de Cidadania no contexto da Política de Saúde Mental de Belo Horizonte.
1 – Mestre em Saúde Coletiva pela Fiocruz Minas. Terapeuta Ocupacional da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.
2 – Doutora em Saúde Coletiva pela Fiocruz Minas. Analista de educação e pesquisa em saúde da Escola de Saúde Pública do Estado de Minas Gerais. Co-orientadora da pesquisa no Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da Fiocruz Minas.
3 – Pesquisadora da Fiocruz Minas e orientadora da pesquisa no Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da Fiocruz Minas.
Para saber mais:
SANTOS, Maíra Porã. Práticas de cuidado em saúde mental infanto-juvenil: a constituição do Projeto Arte da Saúde – Ateliê de Cidadania. Dissertação (Mestrado). Instituto René Rachou. Fundação Oswaldo Cruz. Belo Horizonte, 2021.
TEIXEIRA, Rosalina Martins. Projeto Arte da Saúde: Ateliê de Cidadania. In: NILO, K. et al. Política de Saúde Mental de Belo Horizonte: o cotidiano de uma utopia. Belo Horizonte: Secretaria municipal de Saúde, 2008. 255p.
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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.
Imagem de destaque: UFMG