O menino que jantava dicionários – Parte II

Ivane Perotti

Deixar a noite áspera era uma luta. Manoplas noturnas brigavam pelos limites do dia. Na maior parte das vezes, conseguiam rebaixar a força do sol. Havia algo inquietante no despertar que não lhe chegava ao entendimento. Havia. Tinha certeza. Talvez, quando descobrisse a chave, abrisse as comportas daquele incômodo. Enquanto tocava as páginas deixadas pelo vento, imaginou como seriam elas recém-nascidas. Páginas novas. Bebês.

– Livro, Figo! Com capa e tudo o mais. Isso daí já foi um dicionário.

– De rezas?

– Não! De palavras. Dicionário é… como um porão da língua. Um depósito, entende?

– De palavrões?

– Cara! Você nunca foi à escola?

Nunca! A escola distanciara-se das possibilidades que vivera. Vivia. Na antiga família, sequer se chegava ao assunto. Bastava a cada dia o seu mal. Em sobrevivendo, era muito. 

As páginas sujas pinicavam os dedos. Faziam arder no olho e meio um desejo desconhecido. Em sendo um porão, o que guardava? Curiosidade febril. Ardente. Inusitada. Entranhas verbais associavam-se às linhas manchadas. Uma linha. Duas linhas. A imaginação coloriu espectros. Difícil colocar imagens em quadro branco. Liso. Frio. 

– Eu queria visitar um dicionário!

Figo… você é estranho demais, menino! Não se visita um dicionário. A gente lê, lê.

– Não é a mesma coisa?

Nas ruas, estar em trânsito era uma modalidade do permanecer. Permaneciam ali os que construíam uma ideia muito distante do ficar. Não ficavam. Moviam-se para permanecer ao abrigo do espaço recortado. Paredes invisíveis os colocavam em eterna espera. Sonhos não eram bem-vindos. Maculavam a realidade e as linhas de resistência. Imaginar era pecado. Feria as forças do corpo e os vasos da mente. Quanto mais se imaginasse, menor a capacidade de suportar o vazio de futuro qualquer. Aprendiam cedo a eliminar esperanças. As ruas cortavam vidas como guilhotinas afiadas. Se a cabeça não se colasse à realidade, os sonhos a decepavam. Os exemplos amontoavam-se. Figo era ingênuo demais. Despreparado. Ninguém acreditava que durasse muito tempo por ali.

Figo, decidi levar você para conhecer uma escola.

– Ela tem porão?

– Cara, lá tem muitas coisas. Mas, a gente não pode entrar. Só pode ver, pelo lado de fora.

– A gente pode pedir para visitar?

– Só pelo lado de fora!

– E os dicionários?

– Leva esse daí!

Desnecessário dizer para Figo carregar o dicionário. Tomara para si aquelas folhas encardidas. Motivo de preocupação para o amigo mais velho. Líder entre as crianças, olhava para o menino com ar de despedida. Figo vivia em mundos que não colaboravam com a vida das ruas. Era inteligente. Mas sensível. Tirar dele o que não possuía parecia impossível. Tanto quanto necessário. Ver uma escola pelo lado de fora talvez colaborasse para o entendimento das distâncias. Conhecia o processo. Frequentara uma escola pública. Até que alguém decidiu fechá-la. Fecharam a escola e abriram as ruas. O que resta para as crianças que vivem a miserabilidade? Tornam-se invisíveis por conveniência. Convém à sociedade que se apaguem os intrusos. Os errantes. Os improdutivos. Como velas que um dia arderam possibilidades. Perdera a conta dos meninos abatidos. Baleados. Encarcerados. Mortos. Todos sonhadores. Aspirantes à vida. Ficam no primeiro estágio. Afogados no sangue que não poupa os inocentes. Temia por Figo.

– Olha aí, moleque. Essa é uma escola das grandes.

– Vamos entrar?

– Ô, mano! Não dá, cara! A gente não pode entrar aí. E se tentar…

Figo tentou. Perguntou ao porteiro que os observava se poderiam visitar a escola e o porão. A cena que desceu à rua foi de cortar o coração de qualquer encouraçado. Figo chorou. Susto. Surpresa. Medo. Incompreensão.  Obrigados a correr, desapareceram entre os transeuntes. Desapareceram entre as esquinas e quebradas. Muitos dias se passaram no aturdimento de Figo. Os olhos do menino negavam a realidade. Olhavam sem ver. Não comia. Lembrava um zumbi de pouco tamanho. Perdia a pouca cor da face. Adormecia por necessidade do corpo. Apagava-se.

Figo passava os dias folheando as páginas sujas. Uma a uma. Lentamente. Dependente. Respirava as letras. Separadas. Desenhos de um universo desconhecido. Por obra de seu estado, aconteceu um acidente. Uma briga. Feia. Daquelas que só as ruas conhecem. A tentativa de roubo foi uma provocação. Um chamado para a guerra. Os grupos costumam lutar por território. Gostam de exercer poder. Provocam disputas para serem reconhecidos. Temidos. A força física e moral é identidade fixa nas ruas sem horizonte. O aqui e o agora imperam sobre tudo e todos. Vive-se na berlinda da morte. Figo não compreendera inteiramente esse fato. Poucas folhas restaram no livro resgatado. Uma dúzia delas, talvez. Resistentes na costura e cola. Nova preocupação para o grupo. A introspecção de Figo era evidente. Perdia peso. Se é que ainda sobrava carne sobre os ossos frágeis.

Tomados de preocupação, alguns membros compraram o problema. Apareceram com dois dicionários velhos. Um Aurélio, capa cinza e azul. Um Silveira Bueno, azul, amarelo e vermelho: Inglês e Português. De onde e como, ninguém perguntou. Queriam ver a reação de Figo que abriu a boca para perguntar:

– Posso visitar o porão?

As folhas dos dicionários farfalharam idiossincrasias.


Imagem de destaque: Giovanna Faustini / EBC

 

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