O gambito dos atrasos escolares

Marcelo Silva de Souza Ribeiro

A minissérie, “O Gambito da Rainha” (Netflix), baseado no livro de ficção escrito por Walter Tevis (1983), conta a história de uma garota na década de 1950 que, após a trágica morte de sua mãe, vai parar num orfanato. Descobrindo-se prodigiosa jogadora de xadrez e viciada em “pílulas calmantes” dadas pelo próprio orfanato, a personagem Elizabeth Harmon vive a sua saga.

Longe de fazer uma crítica à referida série, temos a intenção de apreender um sentido explícito a partir da obra, que é a situação de crianças serem medicadas para assegurar o “bom comportamento”, e um outro sentido mais implícito, fazendo referência a palavra “gambito”, que no mundo do xadrez significa artimanha para vencer o adversário ou uma manobra disfarçada, uma artimanha.

Assim, lembrando o clássico artigo de Maria Helena Souza Patto (2007), “Escolas Cheias, Cadeias Vazias”, que denuncia os discursos acerca da importância de se investir na educação escolar com uma preocupação de prevenir a violência, escondendo, na verdade, o preconceito para com as crianças pobres do Brasil, parece que estamos a viver com a situação da Pandemia alguns possíveis “gambitos”, sejam eles mais evidentes ou não.

Não é nenhuma novidade o uso massivo e abusivo de medicamentos para
“bombar” o desempenho de escolares e controlar seus comportamentos (vide o site do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade). Mesmo que ficcional, a própria minissérie traz explícita essa realidade desde os idos da década de 1950. Trata-se aí de uma artimanha que, em nome de desempenhos e resultados, beneficia toda uma economia psicofarmacológica em detrimento daqueles mais vulneráveis e dos graves desdobramentos no desenvolvimento dos sujeitos.

Atualmente, no contexto da pandemia, estamos sendo alertados para os impactos na aprendizagem dos escolares, indicando inclusive, que há retrocessos na leitura, escrita e conhecimento de matemática, por exemplo. 

Ainda que sejam procedentes os prejuízos nos processos de aprendizagens relativos aos conteúdos escolares, é importante estar atento aos “gambitos” mais ardilosos. De igual modo, há também produções de informações que chamam atenção para o perigo de se criar excessivas pressões no sentido das crianças recuperarem seus atrasos. 

Obviamente que isso não significa negligenciar as possibilidades, sobretudo das crianças retomarem suas aprendizagens escolares. O “gambito”, nesse caso, disfarça-se à medida que, em nome de uma “recuperação” dos atrasos ou de assegurar “bons comportamento” mediados por fármacos ou não, novas lógicas de desempenho sejam manejadas e a criança entre num xeque mate.

Sejam explícitos ou implícitos, como a questão da medicalização dos escolares em nome de certas performances, ou as excessivas pressões para recuperar os atrasos escolares, é importante não se deixar envolver nesses possíveis “gambitos”, que escondem outras intenções marcadas pela lógica da padronização da educação e suas correspondentes racionalidades de um mercado que gera, ao final, mais exclusão ou quando não produção de sofrimento.


Imagem de destaque: ajay_suresh / Flickr

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