Quando ouvir os alunos acrescenta humanidade à gestão escolar
“A aprendizagem dos educandos tem que ver com a docência dos professores e professoras, com sua seriedade, com sua competência científica, com sua amorosidade, com seu humor, com sua clareza política, com sua coerência, assim como todas as estas qualidades têm que ver com a maneira mais ou menos justa ou decente com que são respeitados.” Paulo Freire
Sexta-feira. O final da terceira aula acena uma trégua: um quase afastamento das cruezas que invadem a escola e seu universo de tensões. Assumir a prática docente exige consciência relacional no terreno do que se pensa um laboratório social instável, aguçado pelas experiências internas e externas de docentes e discentes. Dar sentido ao que se vê na escola passa pelos filtros das competências técnicas. Dar ouvido aos sentidos dos alunos traduz a decência do compromisso humano do professor.
Olhos embalados em sombras atravessam as portas da trégua momentânea.
_ Professora, você pode conversar comigo?
As paredes da escola acolhem um choro sísmico. Placas de dor transformam o relevo do rosto ainda infantil. Não era uma conversa, era um terremoto. Os tremores das revelações movimentam a energia acumulada por silêncios escondidos em montanhas de medo, vergonha e culpa.
Ao professor cabe o cuidar, mas até onde vai o seu espaço/tempo de ouvir?
_ Não quero que ninguém saiba… não posso denunciar…
A profissional da educação ouve, abraça, não interrompe o choro e não estanca a súbita liberação das falas. Não são revelações. A pré-adolescente pede por amparo, entendimento e… proteção. A profissional da educação é uma mulher. Ela sente nas vísceras as narrativas da aluna. Aperta os olhos para esconder a transferência de lugar. Aluna e professora são uma só. Mas enquanto uma delas expõe o sismo, a outra precisa planejar cada movimento, cada toque, cada olhar. Mede-se em escalas numéricas a força de um terremoto. Mas abalos soterrados por camadas de medos, vergonhas, indiferenças, crenças obscuras e conceitos medievais não têm escala própria. Registram-se assim:
_ … a escola, é o único lugar seguro. Não quero voltar para casa!
_ … aqui eu finjo, sabe? Ninguém imagina o que se passa comigo.
_ Tenho muita vergonha, eu sou suja… tenho nojo de mim.
_ Me disseram para perdoar e esquecer. Não consigo!
_ … não sei perdoar.
_ Tento focar nas aulas, mas não dá…
_ Por que isso tem de acontecer comigo?
_ … sou a culpada, né? Sou imunda!
_ … eu tinha quatro anos.
_ … confiava… era o meu…
_ No início, eu juro! Eu juro que não sabia que era errado…
_ … só entendi quando tinha uns dez anos.
_ Me disseram que é falta de deus.
_ Ela não acredita. Disse que estou inventando tudo… que vou acabar com o casamento deles.
_ Tentei, professora. Tentei… hoje decidi. Vou…
A professora toma para si o objeto que está nas mãos da aluna e guarda o choro no espaço da aflição – haveria tempo para o seu terremoto pessoal.
Sexta-feira. Não há trégua na luta pela educação. Não há trégua para a compreensão dos acidentes recorrentes na vida pessoal do aluno. Gerir projetos de cuidado e proteção aos estudantes deve caminhar junto com o planejamento técnico e sistemático dos princípios pedagógicos. Os meios legais de proteção, tristemente, estão tão distantes da complexidade dos casos quanto a premência de sua celeridade.
Qual o papel do professor? Qual a dimensão da escola na vida da comunidade?
_ Professora… tenho medo!
O choque entre placas tectônicas pode mudar o relevo da crosta terrestre, mas nem sempre os danos são irreparáveis. Com planejamento e decência, a disponibilidade do professor pode tornar-se fórum de ações de apoio e cuidado na gestão escolar. Enquanto a indiferença estiver fora do universo da escola, as tensões podem servir a buscas metodológicas para além dos objetivos de ordem cognitiva. Ouvir não subtrai tempo na agenda dos conteúdos sistematizados. Antes, abre possibilidades às aprendizagens conscientes, ritmadas pelo advento da compreensão e da justiça.
REFERÊNCIAS
FREIRE, P. & HORTON, Myles. O caminho se faz caminhando: conversas sobre educação e mudança social. 4ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003, p. 126.
Imagem de destaque: Kamila Maciejewska / Unsplash
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